Definição

... da totalidade das coisas e dos seres, do total das coisas e dos seres, do que é objeto de todo o discurso, da totalidade das coisas concretas ou abstratas, sem faltar nenhuma, de todos os atributos e qualidades, de todas as pessoas, de todo mundo, do que é importante, do que é essencial, do que realmente conta...
Em associação com Casa Pyndahýba Editora
Ano VI Número 63 - Março 2014

Ensaio - Ronald Augusto

Hans Anderson Brendekilde ~ A Wooded Path In Autumn
Cleci Silveira, Recriando Personalidade e Emoção

Contrariamente ao que acontece com a maioria dos artistas da palavra cujos percursos textuais denunciam com o passar dos anos uma flagrante tendência à acomodação, há outra linhagem de criadores que não acompanha este fluxo até certo ponto entrópico. Pode-se dizer que os representantes de tal linhagem preservam, a contragosto do habitual, incorruptíveis sua vitalidade e juventude.

Enquanto os primeiros, de ordinário, perdem o entusiasmo a partir do momento em que chegam às portas da “impudente idade do bom senso”, os segundos se insurgem contra a regra e passam a encarar a tradição menos como coisa herdada do que como conquista permanente. E desde o irredutivelmente pessoal de suas preferências estéticas estabelecem, por assim dizer, um desejo de abandono da consagração como topo cumulativo de feitos. Enfim, eles conservam intactos dentro de si o jovem artista e sua ininterrupta curiosidade.

Pois é nesse rol que gostaria de ver incluído o nome de Cleci Silveira. Já que com a publicação desse conjunto intitulado Poemas de aprendiz, a autora reverte a nossa expectativa estabelecendo um desvio, uma área de escape dentro do seu itinerário textual. Isto é, a consagrada prosadora (autora de, entre outros, A trama do silêncio, O tocador de saz e o sultão, e Além da porta) estreia agora como poeta. Essa constatação coincide com a opinião de Luiz Antonio de Assis Brasil sobre a escritora, para o romancista trata-se “de uma autora que surpreende a cada obra, e surpreende para muito melhor”. Com efeito, Cleci não se acomoda; ao invés de ceder à redundância (ou seja, fazer o que sabe) nos oferecendo, se fora o caso, mais um belo livro de prosa, ela decide conquistar para si o direito ao risco planificado de escrever e publicar um volume de poemas. Interrompe, portanto, o ciclo da redundância virtuosa (a admirável prosadora) com uma informação nova (a poeta in progress).

O interessante é que esse novo lance textual que experimenta, se dispondo ao desafio, não significa uma contradição, já que, a rigor, pode ser interpretado como a afirmação de uma escritora que se quer em movimento. A poeta Cleci Silveira surge para provocar a instabilidade; em outras palavras, ela afirma o valor da liberdade artística. O livro em apreço ratifica a ideia de que o processo compositivo do escritor envolve dois momentos cujas fronteiras não são assim tão nítidas; ao mesmo tempo esses momentos não obedecem a um traçado linear ou de causa e efeito, eles são relativos e relacionais. Ou seja, todo experimento literário (e artístico) implica uma dialética de “repetir para aprender” e “aprender para criar”. Neste sentido, quando Cleci Silveira resolve chamar seu livro de Poemas de aprendiz, me parece que podemos ler nele essa tensão inventiva – sem a qual não pode haver arte – que marcou o apetite da autora nessa viagem ao (seu) desconhecido que é a poesia.

Dizem alguns escritores que a literatura não precisa de revolução, mas sim de palavras. A revolução que interessa se dá por dentro. Pode ser. Em princípio não há problema nenhum em tentar fazer uma revolução para o outro, para fora. Cleci fez também a sua revolução, ou antes, a sua segunda, só que agora se embrenhando na poesia. Explico-me, segundo a tese irônica do poeta concreto Décio Pignatari, uma revolução completa em literatura pressupõe duas meias revoluções, isto é, uma a se cumprir na prosa e outra na poesia. Embora o crítico não pretenda apostar todas as suas fichas na pertinência das formas híbridas dentro da economia estética contemporânea, o que é razoável discernir de sua proposição, em fim de contas, é que não é possível a um poeta produzir poesia de importância se este se recusa à convivência com a prosa. E, de outra parte, o mesmo vale para o prosador no tocante à poesia.

Ainda no capítulo das teses (todas elas refutáveis), um amigo meu, o escritor Fábio Brüggemann, defende uma que diz o seguinte: só se pode ser bom poeta até os 25 anos, porque depois toda a rebeldia da linguagem a que o jovem se propõe a imprimir em seus versos se transforma, com o tempo, em vício ou em fórmula. E do contrário, só é possível ser um bom prosador depois de velho, principalmente para quem se aprofundou nos bosques da ficção e, além da experiência com a arte da escrita, acumulou a experiência com a existência. Neste caso, se levarmos a sério o quadro acima proposto, Cleci Silveira, mais uma vez reverte a expectativa. Contra natura ela investe suas forças na poesia restaurando no outono a primavera da linguagem. De outra parte, no momento exato da colheita dos louros advindos da experiência de vida, Cleci põe de lado, transitoriamente, a prosa e os prazeres da demora inerentes ao gênero para se dedicar à rapidez e à elipse da poesia.

Não é um despropósito usar a metáfora da “primavera da linguagem” para definir a tarefa poética. A poesia é a linguagem de partida de todos os demais discursos verbais. Cleci reconhece isso ao convocar em “Primeiro poema” o poder desse afazer que evoca a música de
certa valsa triste
dum setembro ido
no canteiro úmido,
assim, Poemas de aprendiz se abre ao leitor como um álbum onde a memória é revivida na tensa tranquilidade do presente. A nostalgia passa pelo crivo da consciência de linguagem. Afinal, não há garantia de que o leitor será seduzido pelos recursos poéticos que lhe são oferecidos poema após poema. Cleci Silveira sabe que a comunhão poética ou esse singular ato comunicativo está sempre aberto ao impreciso; trata-se de uma aventura, ou como se lê no poema “Voltar”:
no céu
procuro um interlocutor com quem repartir palavras
Mas esse “céu” – e me perdoe o leitor por lhe atormentar com minha provisória tresleitura –, esse “céu”, referido no excerto acima, pode ser o da linguagem. Interlocução e diálogo (conclusivos ou não) só são possíveis no interior da linguagem.

Alguém já disse que poesia não é enunciação; a rigor não é nem comunicação. O poeta e místico San Juan de la Cruz a define como uma “música calada”. Em poesia os ritmos e os arranjos sonoros relegam os significados dicionários e o bom senso a uma zona secundária. O ritmo e a música verbal fazem a poesia persuasiva e não informativa. Mas isso só alcança um sentido forte e valioso devido ao desejo de dois tipos de mentes poéticas: uma apta a inventar poemas e outra disposta a crer neles. O poeta fingidor precisa de um leitor igual. Esse leitor se alegra por sentir que a poesia pode comunicar-se antes que seja compreendida. Talvez o poema “Vendaval” fale sem falar, entre outras coisas, algo a propósito disso, julgue o leitor:
Amanheço, aos poucos, quando há vento
O ar apressado deixa exausta minha lucidez
Só mais tarde, os olhos bem abertos, a mente alerta
Tento escrever alguns versos
Que ainda trazem o desalento da noite
Tentar “escrever alguns versos” me remete à tópica do poeta ensimesmado que considera tanto os fracassos, quanto as possibilidades expressivas do seu meio. Esse tema também foi cantado de modo rigoroso por Carlos Drummond de Andrade, e no livro José (1942) pode-se ler o poema “O Lutador”, cujos primeiros versos dizem: “Lutar com palavras/ é a luta mais vã...”, e mesmo assim o poeta volta a lutar mal rompe a manhã. No cerne desse embate mais uma vez nos deparamos com os dois pólos que justificam a arte da poesia, isto é, o “repetir para aprender” e o “aprender para criar”. Esse trabalho, ou melhor, essa viagem sempre recomeçada a cada texto (sistema que se exaure e se renova a cada gesto poeticamente crucial) é a antiga novidade e sua duradoura efemeridade que, de ordinário, nos comovem. Entre as capas de Poemas de aprendiz Cleci Silveira descobre o saudoso e o corrosivo desse ofício do verso: a varanda ensolarada e o cheiro de mofo; o prosaico namoro no portão e a luz mediterrânea, homérica. Enfim, compõe poemas feitos à semelhança do desejo do leitor sensível e ao mesmo tempo afeitos à tradição, e que recriam, para além do lirismo funcionário público, o vivido e o imaginado. Além do mais, os versos de Cleci, graças à sua porção prosadora, são sempre graciosamente narrativos, não distinguem entre cantar e contar, e seguem vizinhos aos versos do português Jorge de Sena, que dizem: “Na mínima coisa que sou, pôde a poesia ser hábito./ Vem, teimosa, com a alegria de eu ficar alegre,/ quando fico triste por serem palavras já ditas/ estas que vêm, lembradas, doutros poemas velhos”. Cleci Silveira expressa o mesmo, mas de maneira diferente, isto é, inventa a sua própria metáfora interpretativa, ouçamo-la:
são apenas dedos fugitivos
a dar vida às teclas de um piano
que, de tão velho, o carregaram cupins
Acho oportuno fechar o prefácio com o famoso lembrete do poeta T. S. Eliot a propósito da relação entre poesia e emoção, pois a observação me parece caber à maravilha para esse feliz aprendizado poético que Cleci Silveira resolveu dividir conosco publicando Poemas de aprendiz, escreve assim o mestre do modernismo: “a poesia não é um perder-se na emoção, mas um escapar da emoção; não é a expressão da personalidade, mas uma fuga da personalidade”, mas Eliot acrescenta em seguida e rapidamente: “porém, de fato, só aqueles que têm personalidade e emoção sabem o que significa querer escapar dessas coisas”. Com efeito, personalidade e emoção são valores e figurações com respeito às quais a fineza da linguagem contida em Poemas de aprendiz não descura em nenhum momento. Cleci Silveira escapa com arte de ambas.

No comments:

Autores

Ademir Demarchi Adília Lopes Adriana Pessolato Afobório Agustín Ubeda Alan Kenny Alberto Bresciani Alberto da Cunha Melo Aldo Votto Alejandra Pizarnik Alessandro Miranda Alexei Bueno Alexis Pomerantzeff Ali Ahmad Said Asbar Almandrade Álvaro de Campos Alyssa Monks Amadeu Ferreira Ana Cristina Cesar Ana Paula Guimarães Andrew Simpson Anthony Thwaite Antonio Brasileiro Antonio Cisneros Antonio Gamoneda António Nobre Antonio Romane Ari Cândido Ari Candido Fernandes Aristides Klafke Arnaldo Xavier Atsuro Riley Aurélio de Oliveira Banksy Bertolt Brecht Bo Mathorne Bob Dylan Bruno Tolentino Calabrone Camila Alencar Cândido Rolim Carey Clarke Carla Andrade Carlos Barbosa Carlos Bonfá Carlos Drummond de Andrade Carlos Eugênio Junqueira Ayres Carlos Pena Filho Carol Ann Duffy Carolyn Crawford Cassiano Ricardo Cecília Meireles Celso de Alencar Cesar Cruz Charles Bukowski Chico Buarque de Hollanda Chico Buarque de Hollanda and Paulo Pontes Claudia Roquette-Pinto Constantine Cavafy Conteúdos Cornelius Eady Cruz e Souza Cyro de Mattos Dantas Mota David Butler Décio Pignatari Denise Freitas Desmond O’Grady Dimitris Lyacos Dino Valls Dom e Ravel Donald Teskey Donizete Galvão Donna Acheson-Juillet Dorival Fontana Dylan Thomas Edgar Allan Poe Edson Bueno de Camargo Eduardo Miranda Eduardo Sarno Eduvier Fuentes Fernández Elaine Garvey Éle Semog Elizabeth Bishop Enio Squeff Ernest Descals Eugénio de Andrade Evgen Bavcar Fernando Pessoa Fernando Portela Ferreira Gullar Firmino Rocha Francisco Niebro George Callaghan George Garrett Gey Espinheira Gherashim Luca Gil Scott-Heron Gilberto Nable Glauco Vilas Boas Gonçalves Dias Grant Wood Gregório de Matos Guilherme de Almeida Hamilton Faria Henri Matisse Henrique Augusto Chaudon Henry Vaughan Hilda Hilst Hughie O'Donoghue Husam Rabahia Ian Iqbal Rashid Ingeborg Bachmann Issa Touma Italo Ramos Itamar Assumpção Iulian Boldea Ivan Donn Carswell Ivan Justen Santana Ivan Titor Ivana Arruda Leite Izacyl Guimarães Ferreira Jacek Yerka Jack Butler Yeats Jackson Pollock Jacob Pinheiro Goldberg Jacques Roumain James Joyce James Merril James Wright Jan Nepomuk Neruda Jason Yarmosky Jeanette Rozsas Jim McDonald Joan Maragall i Gorina João Cabral de Melo Neto João Guimarães Rosa João Werner Joaquim Cardozo Joe Fenton John Doherty John Steuart Curry John Updike John Yeats José Carlos de Souza José de Almada-Negreiros José Geraldo de Barros Martins José Inácio Vieira de Melo José Miranda Filho José Paulo Paes José Ricardo Nunes José Saramago Josep Daústin Junqueira Ayres Kerry Shawn Keys Konstanty Ildefons Galczynski Kurt Weill Lêdo Ivo Léon Laleau Leonardo André Elwing Goldberg Lluís Llach I Grande Lou Reed Luis Serguilha Luiz Otávio Oliani Luiz Roberto Guedes Luther Lebtag Magnhild Opdol Manoel de Barros Marçal Aquino Márcio-André Marco Rheis Marcos Rey Mari Khnkoyan Maria do Rosário Pedreira Mariângela de Almeida Marina Abramović Marina Alexiou Mario Benedetti Mário Chamie Mário de Andrade Mário de Sá-Carneiro Mário Faustino Mario Quintana Marly Agostini Franzin Marta Penter Masaoka Shiki Maser Matilde Damele Matthias Johannessen Michael Palmer Miguel Torga Mira Schendel Moacir Amâncio Mr. Mead Murilo Carvalho Murilo Mendes Nadir Afonso Nâzım Hikmet Nuala Ní Chonchuír Nuala Ní Dhomhnaill Odd Nerdrum Orides Fontela Orlando Gibbons Orlando Teruz Oscar Niemeyer Osip Mandelstam Oswald de Andrade Pablo Neruda Pablo Picasso Pádraig Mac Piarais Patativa do Assaré Paul Funge Paul Henry Paulo Afonso da Silva Pinto Paulo Cancela de Abreu Paulo Henriques Britto Paulo Leminski Pedro Du Bois Pedro Lemebel Pete Doherty Petya Stoykova Dubarova Pink Floyd Plínio de Aguiar Qi Baishi Rafael Mantovani Ragnar Lagerbald Raquel Naveira Raul Bopp Regina Alonso Régis Bonvicino Renato Borgomoni Renato de Almeida Martins Renato Rezende Ricardo Portugal Ricardo Primo Portugal Ronald Augusto Roniwalter Jatobá Rowena Dring Rui Carvalho Homem Rui Lage Ruy Belo Ruy Espinheira Filho Ruzbihan al-Shirazi Salvado Dalí Sandra Ciccone Ginez Santiago de Novais Saúl Dias Scott Scheidly Seamus Heaney Sebastià Alzamora Sebastian Guerrini Shahram Karimi Shorsha Sullivan Sigitas Parulskis Sílvio Ferreira Leite Silvio Fiorani Sílvio Fiorani Smokey Robinson Sohrab Sepehri Sophia de Mello Breyner Andresen Souzalopes Susana Thénon Susie Hervatin Suzana Cano The Yes Men Thom Gunn Tim Burton Tomasz Bagiński Torquato Neto Túlia Lopes Vagner Barbosa Val Byrne Valdomiro Santana Vera Lúcia de Oliveira Vicente Werner y Sanchez Victor Giudice Vieira da Silva Vinícius de Moraes W. B. Yeats W.H. Auden Walt Disney Walter Frederick Osborne William Kentridge Willian Blake Wladimir Augusto Yves Bonnefoy Zdzisław Beksiński Zé Rodrix