Definição

... da totalidade das coisas e dos seres, do total das coisas e dos seres, do que é objeto de todo o discurso, da totalidade das coisas concretas ou abstratas, sem faltar nenhuma, de todos os atributos e qualidades, de todas as pessoas, de todo mundo, do que é importante, do que é essencial, do que realmente conta...
Em associação com Casa Pyndahýba Editora
Ano VI Número 63 - Março 2014

Conto - Roniwalter Jatobá

Elizabeth Magill ~ Lodge (2), oil on canvas

Alojamento
"A cidade está só. Fria e deserta.
O silêncio povoa a mocidade.
O frio que sai das fábricas
dói no peito
como facada."

Aristides Klafke
Pois digo: aqui dá saudade. Tudo no vigiar deste alojamento medonho de grande que parece um hospital vazio. Nessas horas da manhã todo mundo já descambou no rumo do Paraíso, Ipiranga, Mooca, Praça da Sé, aí por São Paulo afora, num serviço, lembro do trabalho de antes, que já me levou, me cansou metade das forças. E dá saudade, quando vejo os quartos de seis, doze homens, camas de cada lado ou mais vejo esse casarão de madeira, camas pra tudo que é canto, vazias. E olho a porta, alguém que limpa a sujeira da noite anterior, um ente perdido empurrando com a vassoura o sujo do tablado. Tudo lá fora: montes de terra, areia, depósitos de tábuas, tijolos que ficam muito tempo parados esperando a vez de irem para as construções, ferramentas, de lado no terreno baldio.

Vigio tudo. Trabalho de noite. Num sendo de chuva, noite de aguaceiro, não é ruim. A gente acostuma. Só é danado quando uma gripe pega e se tosse a noite inteira. Aí, a tosse vai varando o escuro do alojamento e a rua brilhando de luzes vazia cá fora. Quebrando o silêncio, ali, na madrugada algum carro de polícia passa devagar quase parando na frente do cemitério da Vila Mariana, bem na frente, perto, tem noites que me animam as vistas já dobradas de sono: carros parados, gente entrando no velório ao lado do cemitério, entrando saindo com os olhos chorosos.

Vigio essas ruas, essas casas em frente de gente de posse, que até frentes ajardinadas têm, pois estes olhos que tomam conta deste alojamento no virar da noite pro dia, ganham pra isso, só não dá pra vigiar a vida que passa correndo dia após dia.

O caminhão, todo dia, leva e traz. De manhã, no despontar dela, escuro ainda, os homens vão levantando de um a um, rostos sonados, nessas horas eles não fazem a zoada que na tarde, volta deles, eles procuram como se espantasse o medo daqui, como se afugentasse as histórias que cada um trouxe de Minas, Bahia, Pernambuco, Ceará, Paraíba, de Minas mais, como Silvestre que em tudo trabalha, já matou três na terra dele, isso da boca dele sai, mas a gente vê que é muita lambança, assim, acredita descrendo.

E de manhãzinha o frege é pouco, se mal comparando com a tarde, na base de umas quatro horas. Nas quatro da tarde em ponto, algum caminhão desponta na rua, os homens calados em cima, chega aqui, abro o portão, o caminhão entra macio, os homens vão descendo, guardando as ferramentas, outros pulando correndo na direção dos seus quartos, isso aqui vira feira, ali se escuta conversa de um, radiola ligada de outro, música de rádio pra tudo que é canto, aí, alegra mais. Negreja de gente. Assim, gosto.

No outro dia, no cair das horas vai ficando o silêncio de novo. Quando dá assim pelas oito da manhã neste alojamento nem mosca zune nas paredes dos quartos. E lá longe nos bairros, sei, os homens cavando buracos, vazando água de bueiros, cortando travessias. Homens trabalhando de perderem o chocalho, modo de dizer, homens lavando a camisa de suor, o suor descendo pelas costas chegando nas calças, molhando a roupa no calor das ruas de carros apressados e de buzinas reclamando das ruas apertadas e poeirentas.

No último caminhão que sai, já dia tamanho, o alojamento desaquece do calor dos homens, cem se for contar, então procuro meu canto e tiro o sono do corpo com o sol alumiando lá fora na rua. Nessas horas nem a zoada de alguma escavadeira me regra o sono, o sono pesado suado do calor das tardes, sono parecendo tresvario, parecendo coisa de morto. Época de frio, julho de inverno desregrado, é bom. Sono caipora de tardes frias, o vento entrando nas frestas do barracão, pois a divisão, aqui, é feita de madeira fina que separa os quartos, e já vi homem se encostar em corpo de outro, em meados de junho, unir as camas, sem mau sentido, querendo pegar a quentura da gente, no frio muito.

De noite, eu vigiando, o frio entrando no corpo, doendo por dentro da farda e no alojamento o roncar de cem bocas só esperando o chamado das quatro horas. Os caminhões encostados roncando, se aquecendo, o motorista lá dentro, de vidros fechados só esperando os homens subirem na carroceria pra começar a viagem, uns pra mais perto, outros pra mais longe, pra todos o mesmo serviço. A cidade se despertando e já encontrando os homens seguros em cavadores, enxadas, pás, quebrando o asfalto, arrancando a terra das ruas, limpando bueiros.

No começo do alojamento, dois anos se foram, quando se podia ainda contar os homens que viviam aqui, quando não havia esse barulho que espanta a tristeza de agora, de manhã, toda manhã, tinha Doralina. Nem ela passa, agora, em frente ao alojamento. Dá voltas em outras ruas como fugindo daqui. Aqui era bom no começo, pois Doralina empregada num prédio da rua passava safada carregando pão e leite em frente me tentando, eu engomado vestido de farda de brim azul da firma, nem ligo, mas ligando naquela precisão de mulher.

No comments:

Autores

Ademir Demarchi Adília Lopes Adriana Pessolato Afobório Agustín Ubeda Alan Kenny Alberto Bresciani Alberto da Cunha Melo Aldo Votto Alejandra Pizarnik Alessandro Miranda Alexei Bueno Alexis Pomerantzeff Ali Ahmad Said Asbar Almandrade Álvaro de Campos Alyssa Monks Amadeu Ferreira Ana Cristina Cesar Ana Paula Guimarães Andrew Simpson Anthony Thwaite Antonio Brasileiro Antonio Cisneros Antonio Gamoneda António Nobre Antonio Romane Ari Cândido Ari Candido Fernandes Aristides Klafke Arnaldo Xavier Atsuro Riley Aurélio de Oliveira Banksy Bertolt Brecht Bo Mathorne Bob Dylan Bruno Tolentino Calabrone Camila Alencar Cândido Rolim Carey Clarke Carla Andrade Carlos Barbosa Carlos Bonfá Carlos Drummond de Andrade Carlos Eugênio Junqueira Ayres Carlos Pena Filho Carol Ann Duffy Carolyn Crawford Cassiano Ricardo Cecília Meireles Celso de Alencar Cesar Cruz Charles Bukowski Chico Buarque de Hollanda Chico Buarque de Hollanda and Paulo Pontes Claudia Roquette-Pinto Constantine Cavafy Conteúdos Cornelius Eady Cruz e Souza Cyro de Mattos Dantas Mota David Butler Décio Pignatari Denise Freitas Desmond O’Grady Dimitris Lyacos Dino Valls Dom e Ravel Donald Teskey Donizete Galvão Donna Acheson-Juillet Dorival Fontana Dylan Thomas Edgar Allan Poe Edson Bueno de Camargo Eduardo Miranda Eduardo Sarno Eduvier Fuentes Fernández Elaine Garvey Éle Semog Elizabeth Bishop Enio Squeff Ernest Descals Eugénio de Andrade Evgen Bavcar Fernando Pessoa Fernando Portela Ferreira Gullar Firmino Rocha Francisco Niebro George Callaghan George Garrett Gey Espinheira Gherashim Luca Gil Scott-Heron Gilberto Nable Glauco Vilas Boas Gonçalves Dias Grant Wood Gregório de Matos Guilherme de Almeida Hamilton Faria Henri Matisse Henrique Augusto Chaudon Henry Vaughan Hilda Hilst Hughie O'Donoghue Husam Rabahia Ian Iqbal Rashid Ingeborg Bachmann Issa Touma Italo Ramos Itamar Assumpção Iulian Boldea Ivan Donn Carswell Ivan Justen Santana Ivan Titor Ivana Arruda Leite Izacyl Guimarães Ferreira Jacek Yerka Jack Butler Yeats Jackson Pollock Jacob Pinheiro Goldberg Jacques Roumain James Joyce James Merril James Wright Jan Nepomuk Neruda Jason Yarmosky Jeanette Rozsas Jim McDonald Joan Maragall i Gorina João Cabral de Melo Neto João Guimarães Rosa João Werner Joaquim Cardozo Joe Fenton John Doherty John Steuart Curry John Updike John Yeats José Carlos de Souza José de Almada-Negreiros José Geraldo de Barros Martins José Inácio Vieira de Melo José Miranda Filho José Paulo Paes José Ricardo Nunes José Saramago Josep Daústin Junqueira Ayres Kerry Shawn Keys Konstanty Ildefons Galczynski Kurt Weill Lêdo Ivo Léon Laleau Leonardo André Elwing Goldberg Lluís Llach I Grande Lou Reed Luis Serguilha Luiz Otávio Oliani Luiz Roberto Guedes Luther Lebtag Magnhild Opdol Manoel de Barros Marçal Aquino Márcio-André Marco Rheis Marcos Rey Mari Khnkoyan Maria do Rosário Pedreira Mariângela de Almeida Marina Abramović Marina Alexiou Mario Benedetti Mário Chamie Mário de Andrade Mário de Sá-Carneiro Mário Faustino Mario Quintana Marly Agostini Franzin Marta Penter Masaoka Shiki Maser Matilde Damele Matthias Johannessen Michael Palmer Miguel Torga Mira Schendel Moacir Amâncio Mr. Mead Murilo Carvalho Murilo Mendes Nadir Afonso Nâzım Hikmet Nuala Ní Chonchuír Nuala Ní Dhomhnaill Odd Nerdrum Orides Fontela Orlando Gibbons Orlando Teruz Oscar Niemeyer Osip Mandelstam Oswald de Andrade Pablo Neruda Pablo Picasso Pádraig Mac Piarais Patativa do Assaré Paul Funge Paul Henry Paulo Afonso da Silva Pinto Paulo Cancela de Abreu Paulo Henriques Britto Paulo Leminski Pedro Du Bois Pedro Lemebel Pete Doherty Petya Stoykova Dubarova Pink Floyd Plínio de Aguiar Qi Baishi Rafael Mantovani Ragnar Lagerbald Raquel Naveira Raul Bopp Regina Alonso Régis Bonvicino Renato Borgomoni Renato de Almeida Martins Renato Rezende Ricardo Portugal Ricardo Primo Portugal Ronald Augusto Roniwalter Jatobá Rowena Dring Rui Carvalho Homem Rui Lage Ruy Belo Ruy Espinheira Filho Ruzbihan al-Shirazi Salvado Dalí Sandra Ciccone Ginez Santiago de Novais Saúl Dias Scott Scheidly Seamus Heaney Sebastià Alzamora Sebastian Guerrini Shahram Karimi Shorsha Sullivan Sigitas Parulskis Sílvio Ferreira Leite Silvio Fiorani Sílvio Fiorani Smokey Robinson Sohrab Sepehri Sophia de Mello Breyner Andresen Souzalopes Susana Thénon Susie Hervatin Suzana Cano The Yes Men Thom Gunn Tim Burton Tomasz Bagiński Torquato Neto Túlia Lopes Vagner Barbosa Val Byrne Valdomiro Santana Vera Lúcia de Oliveira Vicente Werner y Sanchez Victor Giudice Vieira da Silva Vinícius de Moraes W. B. Yeats W.H. Auden Walt Disney Walter Frederick Osborne William Kentridge Willian Blake Wladimir Augusto Yves Bonnefoy Zdzisław Beksiński Zé Rodrix