Eu tinha uma impressão ruim desta última. Não que eu pudesse culpá-la, a não ser pelos freqüentes fios de cabelo no colchão e os talheres sujos na pia. Este é o lado ruim de se alugar, respirar os cheiros de estranhos e imaginar suas moléculas assombrando o quarto nas células de pele já mortas que acabam deixando pra trás. Se eu quisesse dormir à noite, tinha que me livrar destes pensamentos. Estava mais fácil fazer isso desta vez, eu até já me sentia confortável aqui, e um pouco gorda até. Adoro deixar um rastro à medida em que me movo durante o dia, e buscar este rastro à noite.
Há uma rotina que eu tento manter quando estou escolhendo um lugar. Só dá certo se o senhorio não está por perto, pois a avareza quebra o equilíbrio. Fico num dos quartos por um momento, e deve ser o de dormir, e penso como me senti antes e depois de chegar. Há interferência – a lógica do lugar e o nuançado das luzes – e foi isso o que me pegou da última vez. Lá tinha a luz mais fantástica e eu poderia ir a pé para qualquer lugar que eu quisesse, então mudei para lá. E me mudei de lá em menos de dois meses.
Meus pais acreditavam em sacrifícios regulares, assim nunca fui muito apegada a coisas materiais. Minha mãe foi daquela que dava até nossos bens mais valiosos para qualquer um que batesse à nossa porta. Quase não tinha tempo para impedi-la, e quando me dava por mim, o vendedor de enciclopédias e a mulher dos cosméticos já iam com nossos brinquedos, algumas roupinhas, nossos bichos de pelúcia e nossos livros de historinhas, enquanto o ritmo de suas batidas à porta ainda soavam em meus ouvidos. A gente protestava, mas éramos crianças, e ela estava determinada a nos ensinar isso. Bambolês, ela dizia. Vocês podem brincar de bambolê por quanto tempo quiserem.
Depois que eu saí para morar sozinha, parte da excitação de se mudar era imaginar como eu esbarraria no Joe de novo. Na primeira vez, ele estava nadando num lago perto do meu apartamento atual, nu como veio ao mundo. Distraída, mas prazerosamente interessada, eu o observava sob a luz do sol que se refletia em ângulo nas águas. Na segunda vez, ele estava atrás de mim na fila do mercado, comprando papel-higiênico e presunto. Conforme esvaziava minha cesta perguntei ao caixa, com meu ar de indiferença, se era seguro nadar no lago.
“Se você não se importar com pedaços de telha entre seus pés ou com os curiosos”, ela respondeu, “e não há salva-vidas”.
“Mas não é”, e eu realmente queria saber, “poluído?”. Pensamentos sobre as pulgas ou os efluentes depositados eram suficientes para me dar náuseas.
“Não.”
Comecei a guardar minhas compras. “E pessoas nadam lá?”
“Durante o ano todo. A gente traz um martelo para quebrar o gelo no inverno.”
Me virei em direção ao Joe, pois havia sido ele a responder, masculamente colocando suas compras na esteira.
A outra vez que o vi foi depois de ter me mudado de um lado do rio para o outro, ele estava no palco na “The playhouse”. Foi assim que descobri seu nome – Joe Doyle. Ele representava um marido ciumento, nem um pouco cativante, mas numa situação bem possível. Era intrigante vê-lo se apropriar de um personagem e então decidi ir para as comemorações depois da peça. Ao longo dos anos, eu me impus uma série de experiências para ficar fora de casa, e acho que saí com Joe naquela noite pelo mesmo motivo, mas mantive o relacionamento por uma razão diferente. Antes de conhecê-lo, eu trabalhava em mercadinhos por um tempo, vendendo plantas de jardim. Eu não conhecia nada sobre o que eu vendia, exceto que rosas de dois tons e folhas multi-coloridas eram as mais populares. Um mal dia era quando minha barraca ficava do lado do estande de música, porque independentemente do que eles mais vendessem, os donos da barraquinha sempre tocavam a mesma fita de Country & Western, o dia todo. Nestas noites, eu tinha que ficar na rua até que aquela música saísse da minha cabeça. Joe conseguiu pôr esse silêncio em mim desde o começo.
Certa vez ele me levou para um campo de golfe perto do seu apartamento. Não era um lugar chique, e ao invés daquelas vistosas bandeiras vermelhas, os buracos eram marcados com latinhas de cerveja enfiadas em varetas irregulares, e eu pensei que ele queria me ensinar como jogar. Mas não, apenas nos sentamos na beira de um banco de areia, assistindo aos adolescentes matando aula.
Nosso caso era bastante irregular; a gente podia passar um mês inteiro juntos e então cada um cuidar de suas vidas até o próximo encontro. Eu tirava vantagem dessas interrupções para aperfeiçoar minha rotina de mudanças e para atear fogo em todo o lixo que eu tivesse juntado. Atear fogo expõe minha natureza impiedosa, não há nada que eu não queime se eu estiver no estado de espírito correto, especialmente fotos. Aí estou pronta a me mudar de novo. Ele me pediu uma foto uma vez, “Para que eu possa lembrar de você como você é agora.” “Impossível,” eu disse, “Eu não suportaria.” Fiquei aterrorizada; ele já estava se lembrando de mim.
Foi minha a sugestão de irmos ao mar. Meus pés estavam sentindo falta de sentir dunas de areia e bater nas ondas. Então ele fez uma mala e veio comigo no ônibus até a costa. A gente foi para a praia assim que chegamos, e corremos para um mergulho. Ele não sentiu a necessidade de nadar como fazia no lago. “Essa água tem uma fluidez perfeita”, explicou, “Eu só tenho que ficar nela.” Eu estava feliz em ouvir isso pois tornava mais fácil admitir minhas segundas intenções. “Eu tenho sonhado em morar ao lado da praia,” ele disse, e respirou e se sentou na água por um momento.
Em todo o tempo que ficamos juntos ele nunca mudou de endereço, fazendo de sua rotina de mudanças algo alarmante. Ele queria trazer tudo e eu estava perplexa por sua relutância em deixar seu apartamento. Ao invés de mudar a decoração, minha família expressava sua inquietude mudando-se ao menos uma vez por ano. “É imperativo,” meu pai dizia, “que evitemos a complacência.” Ele pendurava santinhos e terços nos quartos da minha infância, bençãos para trazer conforto à medida que as paredes se desmanchavam ao nosso redor. Eram sempre lugares sem esperança, ansiosos para cair em ruínas e eu não tinha nenhuma afeição por eles. O chalé não era como isso, entretanto. Joe me acordava de manhã gritando, “Eu escapei! Eu escapei!” e então corria pelos quartos para abrir todas as janelas.
Levou cerca de três meses para a certeza se instalar em mim; alguém teria que sair. Eu não estava orgulhosa de mim mesma neste dia, mas ao fechar a porta atrás de mim, não conseguia disfarçar meu sorriso de felicidade.
Definição
... da totalidade das coisas e dos seres, do total das coisas e dos seres, do que é objeto de todo o discurso,
da totalidade das coisas concretas ou abstratas, sem faltar nenhuma, de todos os atributos e qualidades,
de todas as pessoas, de todo mundo,
do que é importante, do que é essencial, do que realmente conta...
Em associação com Casa Pyndahýba Editora | Ano VI Número 63 - Março 2014 |
TUDA - pap.el el.etrônico
Em associação com Casa Pyndahýba Editora
Ano I Número 4 - Abril 2009Tradução - Renato de Almeida Martins
Elaine Garvey é irlandesa, e tem vários trabalhos publicados na revista Dublin Review Magazine. Este conto foi originalmente publicado na coletânea "Dogs Shot From Cannons - New Fiction and Poetry", WhollyTrinity editora, no projeto Criative Writing do Trinity College, Dublin. Título original Music By Roger Miller.
A Música de Roger Miller
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