Ilustração de José Geraldo de Barros Martins
O Espelho
Joelma Valdomira possuia todos os atributos femininos, exceto um... ela não gostava de se olhar no espelho... apesar de sua vaidade e do seu extremo bom gosto ao se maquiar, o ato matinal de se arrumar diante do espelho era um enorme martírio... e sabem por quê??? É que depois dela ter lido aquele texto denominado “Animais dos Espelhos”, que Jorge Luis Borges e Margarita Guerrero incluiram em “O Livro dos Seres Imaginários”, ela se arrepiava toda quando tinha que encarar sua imagem refletida no espelho do banheiro... O texto conta a estória de uma época em que o mundo dos espelhos e o mundo dos homens não estavam incomunicáveis, além disso eram mundos bastante diferentes; até que um dia em que o pessoal do mundo dos espelhos resolveu invadir o nosso mundo... após terríveis batalhas o Imperador Amarelo rechaçou os invasores, encarcerou-os no outro lado e como penalidade privou-os de suas figuras e os obrigou a repetir todos os gestos dos homens... um dia virá em que as criaturas dos espelhos deixarão de nos imitar e iniciarão uma nova revolução...
Como a nossa protagonista ficara muito impressionada com esta leitura, ela morria de medo de que algum dia sua imagem parasse de imitá-la... seria o início do caos...
Passado o tormento matinal, ela tomava seu café da manhã, este por sinal sempre requintado (suco de grapefruit, melão cortado em cubos com presunto crú, pão caseiro e chá inglês com uma rodela de limão siciliano), e depois rumava para o escritório onde tormentos menores a esperavam... Ela trabalhava em uma firma que gerenciava estacionamentos... logo ela que se formara psicanalista, logo ela que lera a obra de Lacan em francês, logo ela que sempre sonhou com ambientes mais requintados... porém alguma coisa em seu destino a empurrava para o ralo... e não era só no emprego não... seu noivo, por exemplo era um perfeito boçal: Domênico Dagobertini, gerente de uma concessionária de veículos, um sujeito falante, na verdade falante até demais, que se enturma com qualquer um após cinco minutos de conversa, que apesar da falta de leitura e do português ruim, possui um raciocínio rápido (principalmente no que tange a trocadilhos sexuais), que conversa sobre todos os assuntos, e é capaz de conceber as teorias mais absurdas... Uma delas, foi a teoria que bolou para provar para sua noiva que para ela o oficio de gerenciamento de estacionamentos era muito mais honesto do que a prática da psicanálise: pois ninguém muda de verdade, então o cara paga uma fortuna fazendo análise por anos a fio e no fim das contas é o mesmo sujeito, ou seja o cliente paga por uma mudança que na verdade nunca ocorre, enquanto que com o estacionamento se dá exatamente o contrário: o cara paga para que o carro fique da mesma maneira como está, sem riscos na pintura, sem roubo do som, sem pneus furados, etc. e quando o cliente volta para o estacionamento o carro está do mesmo jeito: logo um dono de estacionamento é muito mais honesto que um psicanalista, pois um promete que não haverá mudanças com o carro do cliente e cumpre, enquanto que o outro promete uma mudança que nunca ocorre...
É um tremendo mistério como Joelma Valdomira foi ficar noiva de um sujeito como este, mas ela começou a se cansar... um dia se cansou dele, do emprego, de sua falta de coragem, da rotina, de tudo...
Não foi trabalhar, passou a tarde passeando, entrou em uma livraria e viu um rapaz bastante atraente se aproximar perguntando se não tinha “O Livro dos Seres Imaginários” de Jorge Luis Borges e Margarita Guerrero... ela ficou muda...
- Desculpe-me, achei que você fosse vendedora...
- Não faz mal, eu te ajudo a procurar...
E assim começou uma conversa que terminou com a tradicional troca de telefones...
A noite deu uma desculpa qualquer para Domênico Dagobertini, e ficou sozinha em seu apartamento. Preparou um “fettuccine a alfredo”, que comeu degustando duas taças de vinho syrah... foi dormir cedo.
Sonhou que passeava pelo centro de Sâo Paulo com o rapaz da livraria, depois de percorrer vários locais eles entraram no Bar do Léo na Rua Aurora, lá dentro tudo estava diferente, era muito maior, as cortinas eram de veludo grená, os lustres eram de cristal, ao fundo se ouvia um tango, se sentaram em uma mesa, de repente quem estava em sua frente não era mais o rapaz da livraria, mas Jorge Luis Borges em pessoa... olhou para mesa e reparou que no guardanapo de papel estava escrito “Café Tortoni.”.. então Borges explicou a ela que "aquele texto, “Animais dos Espelhos”, era uma metáfora; na verdade, os seres que estão detrás dos espelhos somos nós... somos nós que estamos condenados a imitar nossas projeções sociais, a repetir este teatro cotidiano que se chama sociedade... somente quando pararmos de imitarmos a nós mesmos, (ou aquilo que acreditamos que sejam nós mesmos) é que seremos realmente livres..."
Então Joelma Valdomira acordou e soltou uma sonora gargalhada!!!
Joelma Valdomira possuia todos os atributos femininos, exceto um... ela não gostava de se olhar no espelho... apesar de sua vaidade e do seu extremo bom gosto ao se maquiar, o ato matinal de se arrumar diante do espelho era um enorme martírio... e sabem por quê??? É que depois dela ter lido aquele texto denominado “Animais dos Espelhos”, que Jorge Luis Borges e Margarita Guerrero incluiram em “O Livro dos Seres Imaginários”, ela se arrepiava toda quando tinha que encarar sua imagem refletida no espelho do banheiro... O texto conta a estória de uma época em que o mundo dos espelhos e o mundo dos homens não estavam incomunicáveis, além disso eram mundos bastante diferentes; até que um dia em que o pessoal do mundo dos espelhos resolveu invadir o nosso mundo... após terríveis batalhas o Imperador Amarelo rechaçou os invasores, encarcerou-os no outro lado e como penalidade privou-os de suas figuras e os obrigou a repetir todos os gestos dos homens... um dia virá em que as criaturas dos espelhos deixarão de nos imitar e iniciarão uma nova revolução...
Como a nossa protagonista ficara muito impressionada com esta leitura, ela morria de medo de que algum dia sua imagem parasse de imitá-la... seria o início do caos...
Passado o tormento matinal, ela tomava seu café da manhã, este por sinal sempre requintado (suco de grapefruit, melão cortado em cubos com presunto crú, pão caseiro e chá inglês com uma rodela de limão siciliano), e depois rumava para o escritório onde tormentos menores a esperavam... Ela trabalhava em uma firma que gerenciava estacionamentos... logo ela que se formara psicanalista, logo ela que lera a obra de Lacan em francês, logo ela que sempre sonhou com ambientes mais requintados... porém alguma coisa em seu destino a empurrava para o ralo... e não era só no emprego não... seu noivo, por exemplo era um perfeito boçal: Domênico Dagobertini, gerente de uma concessionária de veículos, um sujeito falante, na verdade falante até demais, que se enturma com qualquer um após cinco minutos de conversa, que apesar da falta de leitura e do português ruim, possui um raciocínio rápido (principalmente no que tange a trocadilhos sexuais), que conversa sobre todos os assuntos, e é capaz de conceber as teorias mais absurdas... Uma delas, foi a teoria que bolou para provar para sua noiva que para ela o oficio de gerenciamento de estacionamentos era muito mais honesto do que a prática da psicanálise: pois ninguém muda de verdade, então o cara paga uma fortuna fazendo análise por anos a fio e no fim das contas é o mesmo sujeito, ou seja o cliente paga por uma mudança que na verdade nunca ocorre, enquanto que com o estacionamento se dá exatamente o contrário: o cara paga para que o carro fique da mesma maneira como está, sem riscos na pintura, sem roubo do som, sem pneus furados, etc. e quando o cliente volta para o estacionamento o carro está do mesmo jeito: logo um dono de estacionamento é muito mais honesto que um psicanalista, pois um promete que não haverá mudanças com o carro do cliente e cumpre, enquanto que o outro promete uma mudança que nunca ocorre...
É um tremendo mistério como Joelma Valdomira foi ficar noiva de um sujeito como este, mas ela começou a se cansar... um dia se cansou dele, do emprego, de sua falta de coragem, da rotina, de tudo...
Não foi trabalhar, passou a tarde passeando, entrou em uma livraria e viu um rapaz bastante atraente se aproximar perguntando se não tinha “O Livro dos Seres Imaginários” de Jorge Luis Borges e Margarita Guerrero... ela ficou muda...
- Desculpe-me, achei que você fosse vendedora...
- Não faz mal, eu te ajudo a procurar...
E assim começou uma conversa que terminou com a tradicional troca de telefones...
A noite deu uma desculpa qualquer para Domênico Dagobertini, e ficou sozinha em seu apartamento. Preparou um “fettuccine a alfredo”, que comeu degustando duas taças de vinho syrah... foi dormir cedo.
Sonhou que passeava pelo centro de Sâo Paulo com o rapaz da livraria, depois de percorrer vários locais eles entraram no Bar do Léo na Rua Aurora, lá dentro tudo estava diferente, era muito maior, as cortinas eram de veludo grená, os lustres eram de cristal, ao fundo se ouvia um tango, se sentaram em uma mesa, de repente quem estava em sua frente não era mais o rapaz da livraria, mas Jorge Luis Borges em pessoa... olhou para mesa e reparou que no guardanapo de papel estava escrito “Café Tortoni.”.. então Borges explicou a ela que "aquele texto, “Animais dos Espelhos”, era uma metáfora; na verdade, os seres que estão detrás dos espelhos somos nós... somos nós que estamos condenados a imitar nossas projeções sociais, a repetir este teatro cotidiano que se chama sociedade... somente quando pararmos de imitarmos a nós mesmos, (ou aquilo que acreditamos que sejam nós mesmos) é que seremos realmente livres..."
Então Joelma Valdomira acordou e soltou uma sonora gargalhada!!!
José Geraldo De Barros Martins é de São Paulo. Músico, pintor e escritor, desde 2001 publica seus desenhos e escritos no blog http://zegeraldo.free.fr.
1 comment:
“O senhor vai me dizer que a literatura não consiste unicamente em obras-primas mas está, sim, povoadas de obras ditas menores. Eu também acreditava nisso. A literatura é um vasto bosque e as obras-primas são os lagos, as árvores imensas ou estranhíssimas, as eloquentes flores preciosas ou as grutas escondidas, mas um bosque também é composto de árvores comuns, de matagais, de charcos, de plantas parasitas, de cogumelos e florezinhas silvestres. Eu me enganava. As obras menores, na realidade não existem. Quero dizer: o autor de uma obra menor não se chama fulaninho ou cicraninho. Fulaninho e cicraninho existem, disso não há dúvida, e sofrem e trabalham e publicam em jornais e revistas e de vez em quando publicam um livro que não desmerece o papel em que está impresso, mas esses livros ou esses artigos, se o senhor olhar com atenção, não são escritos por eles.
Toda obra menor tem um autor secreto, e o autor secreto é, por definição, um escritor de obras primas.”
( Roberto Bolaño – tradução Eduardo Brandão )
Li neste feriado o conto “O Espelho” de Machado de Assis, que meu pai afirma que tem muitos pontos convergentes com o meu mais recente mini-conto, publicado acima… e agora me bateu uma terrível dúvida: será que o bruxo de Cosme Velho (Machado) e el Brujo de Palermo (Borges) não são os autores secretos deste “O Espelho” aqui publicado
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