Definição

... da totalidade das coisas e dos seres, do total das coisas e dos seres, do que é objeto de todo o discurso, da totalidade das coisas concretas ou abstratas, sem faltar nenhuma, de todos os atributos e qualidades, de todas as pessoas, de todo mundo, do que é importante, do que é essencial, do que realmente conta...
Em associação com Casa Pyndahýba Editora
Ano VI Número 63 - Março 2014

Crônica - Roniwalter Jatobá

Candido Portinari - Namorados , 1940 - Óleo sobre tela, 60 x 73 cm

Desencontros

Chamava-se Dora, mas foi apelidada de Santa pela sua tristeza. Era a quarta filha de um lavrador em sua cidade natal, mas a primeira vez que pegou pesado no trabalho foi no primeiro emprego, aos dezoito anos, já como empregada doméstica numa residência em São Paulo. Chegou à metrópole no meio dos anos 50 decidida a tudo, enfrentando uma viagem de quinze dias de pau-de-arara e trem pelas terras da Bahia e Minas. Se existiu de verdade, e ainda fosse viva, completaria 60 anos pelo Natal.

Embora saiba tudo ou quase tudo sobre Santa, nunca a vi em carne e osso. A sua história me foi contada por um antigo namorado, Jacinto, companheiro do quarto ao lado quando morei certa época numa pensão na avenida Celso Garcia. Segundo ele, os dois vieram juntos. Na viagem, nasceu mais que uma sólida amizade. Despediram-se, no entanto, na estação ferroviária do Brás, e cada um buscou o seu próprio caminho. Antes, porém, ela falou de uma ocupação, numa casa de família, o porto seguro. Já em sua busca, ele lembrava por alto o mapa da moradia -- um sobrado branco com faixas amarelas e jardim na frente, na Bela Vista.

Em dias de folga, Jacinto vestia a roupa domingueira e saía naquele rumo. Descia na estação da Luz, passava em frente à rodoviária toda colorida, caminhava pela avenida Duque de Caxias, guiado por uma onda de esperança, como se tivesse a certeza que um dia ia deparar com Santa pelo caminho.

– Até as pedras se encontram, imagine gente igual a nós que vivemos para lá e para cá – me disse.

Passou a andar em ruas cheias de casas, na Bela Vista. Olhava dentro de cada jardim esperando de uma hora para outra a imagem de Santa cobrir toda a dimensão de suas retinas. Chegava à praça da Sé, cheia de gente nas manhãs de domingo. Ali, rodeava a catedral e já sabia o caminho até a avenida Brigadeiro Luís Antônio, esperando em vão a sua forte presença.

Uma vez viu uma mulher entre galhos verdes e flores de um jardim bem-cuidado. Molhava as plantas segurando uma mangueira comprida. De longe, lembrava o perfil e feições de Santa. Ele quis gritar pelas frestas do portão, mas ficou com receio. Ficou ali rodando feito peru tonto até o anoitecer.

– A pele era clara e tinha o corpo cheio como o de Santa – na hora sonhou.

Santa também folgava aos domingos. Vestia a melhor roupa e quase sempre chegava até o largo do Arouche. Na volta, ao cair da tarde, entrava na igreja da Consolação. Ali, conheceu um rapaz. Era Lírio, mestre de obras numa construção em Higienópolis. Depois da missa, Lírio a esperava na escadaria da igreja. Deu um leve puxão nos seus cabelos e pediu gentilmente para acompanhá-la pela mesma trajetória. Na rua Santo Antônio passou a mão em seus cabelos. A partir daí, Santa achava que o domingo não chegava mais.

Um dia, ela sentiu leve tontura na cozinha. Sentou numa cadeira na esperança de que era uma coisa passageira. Foi melhorando, mas descobriu que estava grávida. Conhecia os sintomas e sabia que ia sofrer. Passou a comer de tudo. Adorava pão e doce. A patroa passou a guardar comidas em lugares trancados e colocou um cadeado na geladeira. Santa sentia o cheiro passar pelas frestas quando deitava no cubículo próximo à cozinha e não conseguia mais pegar no sono.

As madrugadas pareciam durar meses. Nas poucas horas insones, tinha o pressentimento de que a criança nasceria morta e ela também morreria. Acertou na primeira idéia. Nem Lírio teve conhecimento de um filho gerado e perdido, nem Jacinto encontraria mais o ente que era uma visagem ou alento na sua solidão.

As lembranças de Santa não vieram ao acaso, embora me recorde sempre de Jacinto, que vive hoje em São Miguel Paulista. Há dias tenho a cabeça ligada no purgatório de Santa. À noite, no silêncio da rua Theodor Herzel, continuo a indagar se ela existiu mesmo ou foi delírio de um jovem migrante solitário. Mas isso é uma dúvida tão imensa como Deus.

Roniwalter Jatobá, jornalista, e escritor, publicou, entre outros, os livros Sabor de química (1977), Crônicas da vida operária (1978), Filhos do medo (1980), Viagem à montanha azul (1982), Trabalhadores do Brasil: histórias do povo brasileiro (1998, organizador), O pavão misterioso e outras memórias (1999), Paragens (2004), Rios sedentos (2006, voltado para o público infanto-juvenil), Viagem ao outro lado do mundo (2009) e Contos Antológicos (2009). Para a coleção “Jovens sem fronteiras”, publicou O jovem Che Guevara (2004), O jovem JK (2005), O jovem Fidel Castro (2008) e O jovem Luiz Gonzaga (2009).

No comments:

Autores

Ademir Demarchi Adriana Pessolato Adília Lopes Afobório Agustín Ubeda Alan Kenny Alberto Bresciani Alberto da Cunha Melo Aldo Votto Alejandra Pizarnik Alessandro Miranda Alexei Bueno Alexis Pomerantzeff Ali Ahmad Said Asbar Almandrade Alyssa Monks Amadeu Ferreira Ana Cristina Cesar Ana Paula Guimarães Andrew Simpson Anthony Thwaite Antonio Brasileiro Antonio Cisneros Antonio Gamoneda Antonio Romane António Nobre Ari Candido Fernandes Ari Cândido Aristides Klafke Arnaldo Xavier Atsuro Riley Aurélio de Oliveira Banksy Bertolt Brecht Bo Mathorne Bob Dylan Bruno Tolentino Calabrone Camila Alencar Carey Clarke Carla Andrade Carlos Barbosa Carlos Bonfá Carlos Drummond de Andrade Carlos Eugênio Junqueira Ayres Carlos Pena Filho Carol Ann Duffy Carolyn Crawford Cassiano Ricardo Cecília Meireles Celso de Alencar Cesar Cruz Charles Bukowski Chico Buarque de Hollanda Chico Buarque de Hollanda and Paulo Pontes Claudia Roquette-Pinto Constantine Cavafy Conteúdos Cornelius Eady Cruz e Souza Cyro de Mattos Cândido Rolim Dantas Mota David Butler Denise Freitas Desmond O’Grady Dimitris Lyacos Dino Valls Dom e Ravel Donald Teskey Donizete Galvão Donna Acheson-Juillet Dorival Fontana Dylan Thomas Décio Pignatari Edgar Allan Poe Edson Bueno de Camargo Eduardo Miranda Eduardo Sarno Eduvier Fuentes Fernández Elaine Garvey Elizabeth Bishop Enio Squeff Ernest Descals Eugénio de Andrade Evgen Bavcar Fernando Pessoa Fernando Portela Ferreira Gullar Firmino Rocha Francisco Niebro George Callaghan George Garrett Gey Espinheira Gherashim Luca Gil Scott-Heron Gilberto Nable Glauco Vilas Boas Gonçalves Dias Grant Wood Gregório de Matos Guilherme de Almeida Hamilton Faria Henri Matisse Henrique Augusto Chaudon Henry Vaughan Hilda Hilst Hughie O'Donoghue Husam Rabahia Ian Iqbal Rashid Ingeborg Bachmann Issa Touma Italo Ramos Itamar Assumpção Iulian Boldea Ivan Donn Carswell Ivan Justen Santana Ivan Titor Ivana Arruda Leite Izacyl Guimarães Ferreira Jacek Yerka Jack Butler Yeats Jackson Pollock Jacob Pinheiro Goldberg Jacques Roumain James Joyce James Merril James Wright Jan Nepomuk Neruda Jason Yarmosky Jeanette Rozsas Jim McDonald Joan Maragall i Gorina Joaquim Cardozo Joe Fenton John Doherty John Steuart Curry John Updike John Yeats Josep Daústin José Carlos de Souza José Geraldo de Barros Martins José Inácio Vieira de Melo José Miranda Filho José Paulo Paes José Ricardo Nunes José Saramago José de Almada-Negreiros João Cabral de Melo Neto João Guimarães Rosa João Werner Junqueira Ayres Kerry Shawn Keys Konstanty Ildefons Galczynski Kurt Weill Leonardo André Elwing Goldberg Lluís Llach I Grande Lou Reed Luis Serguilha Luiz Otávio Oliani Luiz Roberto Guedes Luther Lebtag Léon Laleau Lêdo Ivo Magnhild Opdol Manoel de Barros Marco Rheis Marcos Rey Mari Khnkoyan Maria do Rosário Pedreira Marina Abramović Marina Alexiou Mario Benedetti Mario Quintana Mariângela de Almeida Marly Agostini Franzin Marta Penter Marçal Aquino Masaoka Shiki Maser Matilde Damele Matthias Johannessen Michael Palmer Miguel Torga Mira Schendel Moacir Amâncio Mr. Mead Murilo Carvalho Murilo Mendes Márcio-André Mário Chamie Mário Faustino Mário de Andrade Mário de Sá-Carneiro Nadir Afonso Nuala Ní Chonchuír Nuala Ní Dhomhnaill Nâzım Hikmet Odd Nerdrum Orides Fontela Orlando Gibbons Orlando Teruz Oscar Niemeyer Osip Mandelstam Oswald de Andrade Pablo Neruda Pablo Picasso Patativa do Assaré Paul Funge Paul Henry Paulo Afonso da Silva Pinto Paulo Cancela de Abreu Paulo Henriques Britto Paulo Leminski Pedro Du Bois Pedro Lemebel Pete Doherty Petya Stoykova Dubarova Pink Floyd Plínio de Aguiar Pádraig Mac Piarais Qi Baishi Rafael Mantovani Ragnar Lagerbald Raquel Naveira Raul Bopp Regina Alonso Renato Borgomoni Renato Rezende Renato de Almeida Martins Ricardo Portugal Ricardo Primo Portugal Ronald Augusto Roniwalter Jatobá Rowena Dring Rui Carvalho Homem Rui Lage Ruy Belo Ruy Espinheira Filho Ruzbihan al-Shirazi Régis Bonvicino Salvado Dalí Sandra Ciccone Ginez Santiago de Novais Saúl Dias Scott Scheidly Seamus Heaney Sebastian Guerrini Sebastià Alzamora Shahram Karimi Shorsha Sullivan Sigitas Parulskis Silvio Fiorani Smokey Robinson Sohrab Sepehri Sophia de Mello Breyner Andresen Souzalopes Susana Thénon Susie Hervatin Suzana Cano Sílvio Ferreira Leite Sílvio Fiorani The Yes Men Thom Gunn Tim Burton Tomasz Bagiński Torquato Neto Túlia Lopes Vagner Barbosa Val Byrne Valdomiro Santana Vera Lúcia de Oliveira Vicente Werner y Sanchez Victor Giudice Vieira da Silva Vinícius de Moraes W. B. Yeats W.H. Auden Walt Disney Walter Frederick Osborne William Kentridge Willian Blake Wladimir Augusto Yves Bonnefoy Zdzisław Beksiński Zé Rodrix Álvaro de Campos Éle Semog