"O Cangaceiro", de Candido Portinari
O Retrato do Sertão – 9
Coronel Saturnino, deitado sobre as folhas de mandacaru secas colhidas na fazenda, tomando um trago de Pitú e pitando um cigarro de palha de milho seca, feito com fumo de corda melado, imaginava uma idéia de como se desculpar de Celestina. Não tinha noção alguma de como fazer. Nunca fora romântico com a esposa, nunca lhe dera um presente, mesmo na festa de comemoração das bodas de prata, que completaram há dois anos, ela não teria ganhado nenhum, não fôsse a tigela de prata que capitão Virgulino lhe presenteou.
Naquele instante Saturnino teve remorso, sentiu-se apequenado.
De repente, Celestina se aproximou e num tom ainda raivoso, disparou:
− Tá arrependido, velho safado! Tu não tem é vergonha na cara. Vou contar tudinho pro compadre Virgulino. Tu vai ver, safado.
− Tu não é besta de fazer isso comigo, mulher! O capitão não tem nada a ver com a nossa vida. Ele já tem os problemas dele e não vai querer se intrometer nessas besteiras. Respondeu Saturnino, tentando persuadir a mulher.
Lampião, nascido Virgulino Ferreira da Silva, capitão Virgulino, como era conhecido, cuja patente, entregue por padre Cícero por ordem do governo federal, estava acoitado na fazenda de Saturnino, fugindo da volante depois da investida infeliz que fizera à fazenda do coronel Antonio Gurgel.
Coronel Saturnino, deitado sobre as folhas de mandacaru secas colhidas na fazenda, tomando um trago de Pitú e pitando um cigarro de palha de milho seca, feito com fumo de corda melado, imaginava uma idéia de como se desculpar de Celestina. Não tinha noção alguma de como fazer. Nunca fora romântico com a esposa, nunca lhe dera um presente, mesmo na festa de comemoração das bodas de prata, que completaram há dois anos, ela não teria ganhado nenhum, não fôsse a tigela de prata que capitão Virgulino lhe presenteou.
Naquele instante Saturnino teve remorso, sentiu-se apequenado.
De repente, Celestina se aproximou e num tom ainda raivoso, disparou:
− Tá arrependido, velho safado! Tu não tem é vergonha na cara. Vou contar tudinho pro compadre Virgulino. Tu vai ver, safado.
− Tu não é besta de fazer isso comigo, mulher! O capitão não tem nada a ver com a nossa vida. Ele já tem os problemas dele e não vai querer se intrometer nessas besteiras. Respondeu Saturnino, tentando persuadir a mulher.
Lampião, nascido Virgulino Ferreira da Silva, capitão Virgulino, como era conhecido, cuja patente, entregue por padre Cícero por ordem do governo federal, estava acoitado na fazenda de Saturnino, fugindo da volante depois da investida infeliz que fizera à fazenda do coronel Antonio Gurgel.
No dia em que Virgulino Ferreira recebeu a patente de capitão e a anistia federal pelos crimes que havia praticados no sertão, Saturnino também recebeu a patente de Coronel. Ambos com o mesmo objetivo: combater as tropas de Prestes que avançava pelo sertão agreste, na tentativa de agregar os habitantes ao movimento revolucionário, para a implantação de uma república socialista no país.
Tornaram-se amigos. Lutaram juntos, lado a lado por algum tempo, até que Virgulino sentindo-se traído pelo acordo que fizera com as autoridades federais, e perseguido pela volante, desculpou-se com padre Cícero, seu protetor, e voltou ao cangaço, enquanto Saturnino continuou com o propósito inicial de aniquilar o idealismo de Prestes.
− Como ficar ao lado do governo e contra o compadre... combater as tropas de Carlos Prestes, e ao mesmo tempo defender a luta do compadre Virgulino, se os dois têm o mesmo objetivo? Dizia Saturnino aos amigos, empregados e capangas. Afinal, eles têm a mesma ideologia. Prestes quer derrubar o governo autoritário, oligarca e reacionário, e implantar uma república socialista, pela qual todos terão seus direitos, não apenas alguns privilegiados do sistema – senadores, deputados, prefeitos, governadores – costumeiros aproveitadores, ladrões e assaltantes dos cofres públicos, cuja gestão, nada pode fazer por falta de recursos humanos, cientifícos e tecnológicos para descobrir as fraudes que se praticam contra o governo central. Estou de acordo com suas ideías, porém, enquanto o compadre também luta pelos oprimidos, tirando um pouco das ricos e dando aos que nada tem, está fazendo o mesmo bem....é a mesma coisa, dizia. Os dois têm a mesma razão e o mesmo objetivo. Não posso me omitir nessa luta. Mas, Prestes que me perdoe. Não o conheço, nunca o ví, por isso, ficarei ao lado do compadre, de quem sou amigo e já o conheço há muito tempo. Se Prestes passar pelas minhas terras, na certeza levará chumbo. Com o compadre Virgulino a coisa é diferente! Ele jamais atacará minha fazenda! Afirmava Saturnino aos seus empregados e capangas, reunidos no curral, deitado nas folhas secas de mandacaru desprezando a rede tecida de algodão original – presente que recebera de Lampião quando comemorou as bodas de prata - cujo produto fôra confeccionado pelo mesmo artesão que fazia seus chapéus, punhais, arruelas e anéis.
Sem camisa, sentindo a brisa do vento que soprava na ensolarada tarde quente prenunciando chuvas que tardavam a chegar, imaginava uma maneira menos dolorosa para Celestina de desculpar-se dos acontecimentos da noite anterior. Previa antecipadamente, que ela não iria aceitar suas desculpas, mesmo porque Zé Vaqueiro já o havia advertido antes.
− Celestina, vem cá meu amor! Dá-me um abraço e aceita o meu perdão. Pediu Saturnino, ignorando o vai-e-vem de empregados ao jirau.
− Não vou, não! E vou contar tudo pro compadre sobre suas tuas safadezas! Tú vais ver, velho safado! Ele está escondido no jirau com seus cabras e uma mulher bonita, de nome Maria Déia que trouxe na garupa da mula ontem à noitinha enquanto tu estavas com as raparigas de dona Elvira. Ele me disse que foi persseguido pela volante e precisava de ajuda. Como tú não estavas, eu pedi pra ele e seus cabras se acomodarem no jirau até o perigo passar. Não sabia o que fazer. Fiquei com medo da volante invandir nossas terras. Perguntou por você, como se estivesse precisando de ajuda. Parecia ferido! Mas nada pude fazer, apesar de oferecer minha ajuda e de nossos empregados. Machão como ele é, agradeceu, dizendo que não era nada, para que eu não me preocupase. Ele sempre prescindiu de auxílio de qualquer mulher. Igual a tú, safado! Zé Vaqueiro não estava, porque eu pedi para que ele fosse te procurar. Quem manda sassaricar com as raparigas de dona Elvira? Eu não vou te perdoar nunca, Saturnino, respondeu Celestina, dirigindo-se ao jirau levando comida para o bando de Lampião.
− Vem cá mulher! Gritava Saturnino, não acreditando no que ela dizia. O compadre, uma hora dessas está em Mossoró.
− Você é quem pensa. Ele está aqui em carne e osso, velho safado... Vem cá vê... ele está precisando de tua ajuda!
Saturnino, cismado com as afirmações da mulher, que parecia dizer a verdade, porém um tanto incrédulo ainda, levantou-se do chão e foi até o jirau.
− Onde ele está?
− Está na açotéia ferido no olho. Pedi para Zé Vaqueiro buscar o médico, mas ele disse que não precisava, que era pra gente não se preocupar, porque ele mesmo iria ao hospital de Laranjeiras.
Coronel Saturnino, de repetente, viu-se diante de um problema que poderia lhe acarretar algumas consequências. Celestina jamais mentiria para ele, principalmente quando afirmava incisivamente da presença do capitão em sua fazenda. Sentiu-se culpado pela primeira vez na vida por não estar em casa e não prestar auxílio ao compadre, no instante em que ele mais precisava.
Afroxou-se, acovardou-se!
Dirigiu-se ao jirau, na certeza de econtrar o compadre ferido e moribundo, segundo lhe dissera Celestina.
− Olá, compadre, como vai?
− Coronel, não estou nada bem...os cabras da volante conseguiram me atingir o olho esquerdo. Vou precisar de cuidados médicos, mas não se preocupe com isso. Já mandei Faísca até Laranjeiras conversar com doutor Brandão e observar a movimentação da polícia. Assim que ele chegar me sentirei mais seguro e confiante, e amanhã bem cedinho irei com três cabras e cuidarei disso.
− Ô compadre, como você consegue viver fugindo desse jeito, homem! Já não é hora de abandonar esta vida desgraçada?
− Compadre, tu sabes muito bem. Já te contei quando recebemos as patentes das mãos do padre Cícero. Depois que o delegado José Lucena matou meu pai a mando de Salustiano, aquele vizinho abestado que mais parecia o diabo, numa briga idiota sobre o limite de nossas terras que ele dizia que invadimos, decidi me vingar e fazer minha própria justiça. Aí, meu compadre, não tive outra escolha. Vinguei a morte do velho e para fugir da polícia, alistei-me no bando de Sinhô Pereira, de onde me afastei posteriormente, por desinteresse do grupo a continuar lutando contra as injustiças que se praticam com os pobres oprimidos sertanejos. Depois que Sinhô Pereira morreu, chamei meu irmão Levino e formamos nosso próprio grupo. Começamos combatendo a elite rica que se aproveitava da ignorância e da miséria do pobre agricultor. Dei muitos contos de réis tirados dos ricos, para quem não tinha nada. Dei comida para quem tinha fome. Batizei muitas crianças e me tornei compadre de muita gente neste sertão adoidado! Não quero largar esta vida, pelo menos, enquanto não ver o sertanejo dono de si e do pedaço de terra que lhe pertence. Luto contra a miséria e a subserviência do povo do sertão que se ajoelha miseravelmente aos pés dos poderosos implorando-lhes comida.
− Isso para mim compadre, é uma vergonha! Demasiadamente imoral e submisso! Não suporto esta humilhação, enquanto a lei de Deus e dos homens dizem que somos iguais. Vou continuar lutando até conseguir essa igualdade. Lutarei por ela em todos os cantos deste sertão bruto e desumano. Quando conseguir vencê-la, ai sim, me darei por realizado! Poderei me aposentar ou até entregar-me às autoridades. Só Deus e meu padrinho padre Cícero poderão falar por mim.
− Onde está a igualdade social desse povo, compadre? Responda-me, homem! Isso não existe. Por esse motivo é que me encorajo de lutar contra os poderosos corruptos que se valem da humildade dos mais fracos para aumentar seu patrimônio e engordar suas contas bancárias. Minha luta é gloriosa, divina, compadre! Combater essa elite corrupta e podre é o meu maior objetivo. Só abandono essa vida quando souber que o coitado sertanejo terá alimentos para comer três vezes ao dia, terá água para abastecer a plantação, e vida digna, sem precisar esmolar e submeter-se à humilhação impiedosa aos pés desses coronéis safados! Se não conquistar este objetivo antes de morrer, ao menos tentei e, com certeza, ficarei na história deste povo oprimido. Todos se lembrarão de mim.
Converssaram até o sol se esconder no horizonte claro, e a noite se aproximar sob um céu estrelado, fugindo do sol forte e quente. As estrelas iluminavam o céu, indo e vindo de um canto a outro como se pressagiassem algumas tempestades que soem acontecer nessas épocas de secura. Virgulino, após ter a certeza do que Faísca lhe dissera que em Laranjeiras estava tudo calmo, reuniu três cabras de sua confiança e se dirigiu a clínica do doutor Brandão, médico e amigo, que o conheceu quando cuidou de Corisco, seu fiel companheiro.
− Olá, compadre, como vai?
− Coronel, não estou nada bem...os cabras da volante conseguiram me atingir o olho esquerdo. Vou precisar de cuidados médicos, mas não se preocupe com isso. Já mandei Faísca até Laranjeiras conversar com doutor Brandão e observar a movimentação da polícia. Assim que ele chegar me sentirei mais seguro e confiante, e amanhã bem cedinho irei com três cabras e cuidarei disso.
− Ô compadre, como você consegue viver fugindo desse jeito, homem! Já não é hora de abandonar esta vida desgraçada?
− Compadre, tu sabes muito bem. Já te contei quando recebemos as patentes das mãos do padre Cícero. Depois que o delegado José Lucena matou meu pai a mando de Salustiano, aquele vizinho abestado que mais parecia o diabo, numa briga idiota sobre o limite de nossas terras que ele dizia que invadimos, decidi me vingar e fazer minha própria justiça. Aí, meu compadre, não tive outra escolha. Vinguei a morte do velho e para fugir da polícia, alistei-me no bando de Sinhô Pereira, de onde me afastei posteriormente, por desinteresse do grupo a continuar lutando contra as injustiças que se praticam com os pobres oprimidos sertanejos. Depois que Sinhô Pereira morreu, chamei meu irmão Levino e formamos nosso próprio grupo. Começamos combatendo a elite rica que se aproveitava da ignorância e da miséria do pobre agricultor. Dei muitos contos de réis tirados dos ricos, para quem não tinha nada. Dei comida para quem tinha fome. Batizei muitas crianças e me tornei compadre de muita gente neste sertão adoidado! Não quero largar esta vida, pelo menos, enquanto não ver o sertanejo dono de si e do pedaço de terra que lhe pertence. Luto contra a miséria e a subserviência do povo do sertão que se ajoelha miseravelmente aos pés dos poderosos implorando-lhes comida.
− Isso para mim compadre, é uma vergonha! Demasiadamente imoral e submisso! Não suporto esta humilhação, enquanto a lei de Deus e dos homens dizem que somos iguais. Vou continuar lutando até conseguir essa igualdade. Lutarei por ela em todos os cantos deste sertão bruto e desumano. Quando conseguir vencê-la, ai sim, me darei por realizado! Poderei me aposentar ou até entregar-me às autoridades. Só Deus e meu padrinho padre Cícero poderão falar por mim.
− Onde está a igualdade social desse povo, compadre? Responda-me, homem! Isso não existe. Por esse motivo é que me encorajo de lutar contra os poderosos corruptos que se valem da humildade dos mais fracos para aumentar seu patrimônio e engordar suas contas bancárias. Minha luta é gloriosa, divina, compadre! Combater essa elite corrupta e podre é o meu maior objetivo. Só abandono essa vida quando souber que o coitado sertanejo terá alimentos para comer três vezes ao dia, terá água para abastecer a plantação, e vida digna, sem precisar esmolar e submeter-se à humilhação impiedosa aos pés desses coronéis safados! Se não conquistar este objetivo antes de morrer, ao menos tentei e, com certeza, ficarei na história deste povo oprimido. Todos se lembrarão de mim.
Converssaram até o sol se esconder no horizonte claro, e a noite se aproximar sob um céu estrelado, fugindo do sol forte e quente. As estrelas iluminavam o céu, indo e vindo de um canto a outro como se pressagiassem algumas tempestades que soem acontecer nessas épocas de secura. Virgulino, após ter a certeza do que Faísca lhe dissera que em Laranjeiras estava tudo calmo, reuniu três cabras de sua confiança e se dirigiu a clínica do doutor Brandão, médico e amigo, que o conheceu quando cuidou de Corisco, seu fiel companheiro.
José Miranda Filho, ex-Presidente e fundador do PMDB em São Caetano do Sul, Venerável Mestre da Loja Maçônica G. Mazzini (grau 33), é advogado e contador, colabora com o jornal ABC Reporter e atua como Diretor Financeiro do Conselho Gestor do Hospital Benificente São Caetano. Posta no Blog do Miranda.
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