Definição

... da totalidade das coisas e dos seres, do total das coisas e dos seres, do que é objeto de todo o discurso, da totalidade das coisas concretas ou abstratas, sem faltar nenhuma, de todos os atributos e qualidades, de todas as pessoas, de todo mundo, do que é importante, do que é essencial, do que realmente conta...
Em associação com Casa Pyndahýba Editora
Ano VI Número 63 - Março 2014

Ensaio - Ronald Augusto

sketch for a portrait - Juliana Duclós

Dois poemas de Manuel Bandeira

O bicho
Vi ontem um bicho
Na imundície do pátio
Catando comida entre os detritos.

Quando achava alguma coisa,
Não examinava nem cheirava:
Engolia com voracidade.

O bicho não era um cão,
Não era um gato,
Não era um rato.

O bicho, meu Deus, era um homem.
No poema “O bicho”, Manuel Bandeira recorta a silhueta de um bicho “Na imundície do pátio/ Catando comida entre os detritos”. Num exame mais cerrado, descarnado de qualificativos poeticamente corretos, o poeta começa a ajustar o foco da sua máquina verbal de produzir efeitos, e numa progressão de enquadramentos, partindo desde o mais difuso até o mais nítido e duro, nota que “O bicho não era um cão,/ Não era um gato,/ Não era um rato.” O desenlace do poema, que não chega a surpreender − acho inclusive que essa possibilidade nem é a que mais interessa a Manuel Bandeira −, nos diz que o bicho “era um homem”, ou que o bicho fora um homem. Com efeito, o poeta não se surpreende com tal metamorfose regressiva (notar a degradação do sujeito e o desafeto que infunde, escalonados na simbologia prosaica dos animais escolhidos: o cão, o gato, o rato, como degraus por onde desce, indo do animal civil ao mais incivil, e não sendo sequer a sombra do último). Essa espécie de transmigração asquerosa, não sobressalta o poeta, pois a locução “meu Deus”, do verso final, espremida entre vírgulas e quase opaca, à boca pequena, não chega a indicar uma franca desilusão, mas sim um amargo reconhecimento acerca da nossa capacidade para a dissipação trágica que secunda a entropia com que nos debatemos.

Poema tirado de uma notícia de jornal
João Gostoso era carregador de feira-livre e morava no morro da Babilônia num barracão sem número
Uma noite ele chegou no bar Vinte de Novembro
Bebeu
Cantou
Dançou
Depois se atirou na Lagoa Rodrigo de Freitas e morreu afogado.
Passos da cruz do personagem do “Poema tirado de uma notícia de jornal” (cabe lembrar que sua fatura é de meados da década de 1920, período em que o ideário estético modernista enfrentava resistência de lado a lado): o nome paródico, João Gostoso, é uma alcunha, talvez de um bamba do samba, um apelido que indica em retrospectiva uma biografia de suburbano conquistador amoroso; João Gostoso é pobre e mora no morro; João Gostoso é um homem só, no momento não é temido nem estimado; João Gostoso dá cabo da própria vida. O desenho rítmico do poema de Manuel Bandeira apresenta uma interessante variação e poderia ser desmembrado em quatro blocos: (1) o primeiro verso onde João Gostoso entra em cena, verso largo, informativo, cuja aparente platitude é verticalizada com uma série de incrustações aliterantes em / r / alveolares que também se duplicam em / rr / velares, conferindo um índice de vibração a uma frase musical que devido ao comprimento poderia resvalar em frouxidão: “...eRa caRRegadoR de feiRa-livRe e moRava no moRRo da Babilônia num baRRacão sem númeRo”, e de modo suplementar destaca-se ainda a progressiva seqüência paronomástica: MoRava/ MoRRo/ núMeRo ; (2) o segundo verso que inicia com “Uma noite...”, e evoca uma preparação, um augúrio, a prefiguração do acontecimento, João Gostoso tomou a sua decisão, agora ele inspira; (3) a pequena enumeração em andamento binário ascendente, um acento fraco seguido de um forte, “Bebeu/ Cantou/ Dançou”, samba-canção-síntese onde João Gostoso, num derradeiro frenesi, sobe, fica alto, para depois cair; finalmente (4) a morte por água, os círculos concêntricos provocados pelo baque surdo, pelo fecho quase à maneira de um haikai — me perdoem os puristas da forma clássica japonesa.

Ronald Augusto nasceu em Rio Grande (RS) a 04 de agosto de 1961. Poeta, músico, letrista e crítico de poesia. É autor de, entre outros, Homem ao Rubro (1983), Puya (1987), Kânhamo (1987), Vá de Valha (1992), Confissões Aplicadas (2004) e No Assoalho Duro (2007). Dá expediente no blog www.poesia-pau.zip.net

No comments:

Autores

Ademir Demarchi Adriana Pessolato Adília Lopes Afobório Agustín Ubeda Alan Kenny Alberto Bresciani Alberto da Cunha Melo Aldo Votto Alejandra Pizarnik Alessandro Miranda Alexei Bueno Alexis Pomerantzeff Ali Ahmad Said Asbar Almandrade Alyssa Monks Amadeu Ferreira Ana Cristina Cesar Ana Paula Guimarães Andrew Simpson Anthony Thwaite Antonio Brasileiro Antonio Cisneros Antonio Gamoneda Antonio Romane António Nobre Ari Candido Fernandes Ari Cândido Aristides Klafke Arnaldo Xavier Atsuro Riley Aurélio de Oliveira Banksy Bertolt Brecht Bo Mathorne Bob Dylan Bruno Tolentino Calabrone Camila Alencar Carey Clarke Carla Andrade Carlos Barbosa Carlos Bonfá Carlos Drummond de Andrade Carlos Eugênio Junqueira Ayres Carlos Pena Filho Carol Ann Duffy Carolyn Crawford Cassiano Ricardo Cecília Meireles Celso de Alencar Cesar Cruz Charles Bukowski Chico Buarque de Hollanda Chico Buarque de Hollanda and Paulo Pontes Claudia Roquette-Pinto Constantine Cavafy Conteúdos Cornelius Eady Cruz e Souza Cyro de Mattos Cândido Rolim Dantas Mota David Butler Denise Freitas Desmond O’Grady Dimitris Lyacos Dino Valls Dom e Ravel Donald Teskey Donizete Galvão Donna Acheson-Juillet Dorival Fontana Dylan Thomas Décio Pignatari Edgar Allan Poe Edson Bueno de Camargo Eduardo Miranda Eduardo Sarno Eduvier Fuentes Fernández Elaine Garvey Elizabeth Bishop Enio Squeff Ernest Descals Eugénio de Andrade Evgen Bavcar Fernando Pessoa Fernando Portela Ferreira Gullar Firmino Rocha Francisco Niebro George Callaghan George Garrett Gey Espinheira Gherashim Luca Gil Scott-Heron Gilberto Nable Glauco Vilas Boas Gonçalves Dias Grant Wood Gregório de Matos Guilherme de Almeida Hamilton Faria Henri Matisse Henrique Augusto Chaudon Henry Vaughan Hilda Hilst Hughie O'Donoghue Husam Rabahia Ian Iqbal Rashid Ingeborg Bachmann Issa Touma Italo Ramos Itamar Assumpção Iulian Boldea Ivan Donn Carswell Ivan Justen Santana Ivan Titor Ivana Arruda Leite Izacyl Guimarães Ferreira Jacek Yerka Jack Butler Yeats Jackson Pollock Jacob Pinheiro Goldberg Jacques Roumain James Joyce James Merril James Wright Jan Nepomuk Neruda Jason Yarmosky Jeanette Rozsas Jim McDonald Joan Maragall i Gorina Joaquim Cardozo Joe Fenton John Doherty John Steuart Curry John Updike John Yeats Josep Daústin José Carlos de Souza José Geraldo de Barros Martins José Inácio Vieira de Melo José Miranda Filho José Paulo Paes José Ricardo Nunes José Saramago José de Almada-Negreiros João Cabral de Melo Neto João Guimarães Rosa João Werner Junqueira Ayres Kerry Shawn Keys Konstanty Ildefons Galczynski Kurt Weill Leonardo André Elwing Goldberg Lluís Llach I Grande Lou Reed Luis Serguilha Luiz Otávio Oliani Luiz Roberto Guedes Luther Lebtag Léon Laleau Lêdo Ivo Magnhild Opdol Manoel de Barros Marco Rheis Marcos Rey Mari Khnkoyan Maria do Rosário Pedreira Marina Abramović Marina Alexiou Mario Benedetti Mario Quintana Mariângela de Almeida Marly Agostini Franzin Marta Penter Marçal Aquino Masaoka Shiki Maser Matilde Damele Matthias Johannessen Michael Palmer Miguel Torga Mira Schendel Moacir Amâncio Mr. Mead Murilo Carvalho Murilo Mendes Márcio-André Mário Chamie Mário Faustino Mário de Andrade Mário de Sá-Carneiro Nadir Afonso Nuala Ní Chonchuír Nuala Ní Dhomhnaill Nâzım Hikmet Odd Nerdrum Orides Fontela Orlando Gibbons Orlando Teruz Oscar Niemeyer Osip Mandelstam Oswald de Andrade Pablo Neruda Pablo Picasso Patativa do Assaré Paul Funge Paul Henry Paulo Afonso da Silva Pinto Paulo Cancela de Abreu Paulo Henriques Britto Paulo Leminski Pedro Du Bois Pedro Lemebel Pete Doherty Petya Stoykova Dubarova Pink Floyd Plínio de Aguiar Pádraig Mac Piarais Qi Baishi Rafael Mantovani Ragnar Lagerbald Raquel Naveira Raul Bopp Regina Alonso Renato Borgomoni Renato Rezende Renato de Almeida Martins Ricardo Portugal Ricardo Primo Portugal Ronald Augusto Roniwalter Jatobá Rowena Dring Rui Carvalho Homem Rui Lage Ruy Belo Ruy Espinheira Filho Ruzbihan al-Shirazi Régis Bonvicino Salvado Dalí Sandra Ciccone Ginez Santiago de Novais Saúl Dias Scott Scheidly Seamus Heaney Sebastian Guerrini Sebastià Alzamora Shahram Karimi Shorsha Sullivan Sigitas Parulskis Silvio Fiorani Smokey Robinson Sohrab Sepehri Sophia de Mello Breyner Andresen Souzalopes Susana Thénon Susie Hervatin Suzana Cano Sílvio Ferreira Leite Sílvio Fiorani The Yes Men Thom Gunn Tim Burton Tomasz Bagiński Torquato Neto Túlia Lopes Vagner Barbosa Val Byrne Valdomiro Santana Vera Lúcia de Oliveira Vicente Werner y Sanchez Victor Giudice Vieira da Silva Vinícius de Moraes W. B. Yeats W.H. Auden Walt Disney Walter Frederick Osborne William Kentridge Willian Blake Wladimir Augusto Yves Bonnefoy Zdzisław Beksiński Zé Rodrix Álvaro de Campos Éle Semog