Esperança do Moribundo Indian ink on paper, by Guilherme Kramer |
O Retrato do Sertão – 14
Seu Quincas soube da morte de Sá Lorena bem cedinho no curral, enquanto ordenhava as vacas. Deixou seus afazeres matinais e se dirigiu apressadamente até o sítio de Juvenal. Ofereceu-se para pagar as despesas do funeral. Fazia isso em consideração a ele, não por ela. Ela não merecia!. Seu Quincas sempre agiu dessa maneira, desde que algum vizinho dele precisasse. Mantinha em sua fazenda, sobre o alambrado de um dos quartos uma urna funerária pronta, feita de sobras de aroeira para emprestar, ou até doar se fosse o caso, a quem dela precisasse num momento imprevisível. Depois do sepultamento do corpo devolviam-lhe outro igual, pagavam pelas despesas que tivera, ou ficava ao deus dará. Quase sempre seu Quincas levava a pior. Mas não se preocupava com isso. Esse ato de benevolência fazia parte de suas atividades sociais. Seu desejo de ajudar o próximo era maior, até mesmo se o próximo desmerecesse sua consideração. “Essa dádiva vem de Deus”. Dizia para os amigos que não se conformavam de ver-lhe ajudando gente que não merecia. Os mais maldosos contudo, achavam que com esse ato de solidariedade a Juvenal, ele pretendia encobrir fatos passados e justificar-se de alguns delitos cometidos contra Sá Lorena, e assim não sentir-se envolvido na cumplicidade do assassinato dela, cujo boato já se ouvia pelos quatro cantos da vila. Devido os entreveros que ambos tiveram no passado, Sá Lorena tinha suficientes razões para temer qualquer tipo de ameaça de seu Quincas. Vivia afirmando pelo vilarejo que estava sendo ameaçada de morte por ele. Pouca gente dava crédito no que ela dizia, outros porém, davam de ombros, enquanto os mais cépticos desejavam apenas sua morte como se fosse a coisa mais natural do mundo. Todos estaríamos livres de suas blasfêmias, diziam.
Seu Quincas se sentia incomodado com essas insinuações, porém, sua forte personalidade não seria capaz de induzir-lhe descumprir-se de suas ações sociais.
-- Juvenal, tome dois contos de réis para cobrir as despesas do funeral, já que não precisa do caixão e do cemitério.
Apertou-lhe a mão, condoeu-se pelo falecimento da esposa, e antes de retirar-se disse:
-- Haveremos de encontrar o assassino cruel de sua mulher.
-- Seu Quincas, agradeço-lhe de todo meu coração este gesto sublime de solidariedade e amizade. Sei e sou testemunha de que o senhor sempre foi um cidadão prestante. Jamais deixou de socorrer àqueles que precisam de ajuda, qualquer que seja a razão. Mais uma vez o senhor demonstrou ser uma pessoa solidária com o sofrimento de outrem. Só aceito este dinheiro porque no momento estou passando por uma situação financeira difícil. O senhor soube, né, que Lampião mandou seus cabras queimarem toda a nossa plantação... Ameaçou-nos de morte, se Sá Lorena não parasse de falar mal de certas pessoas...Inclusive de padre Fausto. As moedas que eu mantinha guardadas no cofrinho de barro os capangas quebraram-o e roubaram. Sobrou apenas uns trocados que eu sempre trazia no bolso da calça, alguns míseros réis que, graças a Deus pude comprar alguma coisa que necessitávamos para atravessar o resto do mês, e não pedir ajudar na Igreja. Aquele bandido safado, facínora e sanguinário teve o fim que mereceu. Sá Lorena sempre dizia que ele, no inferno aonde deverá está agora, irá pagar por tudo de ruim que nos fez.
Seu Quincas, sem se comover do desabafo de Juvenal, porém condoído das queixas que ouvira, despediu-se dele, reafirmando:
-- Fique tranquilo Juvenal! Haveremos de descobrir o assassino.
O Delegado não tinha qualquer pista por onde iniciar as investigações do crime, tampouco tinha interesse e condições materiais e humanas para iniciar o inquérito policial sobre a morte de Sá Lorena. Não fosse a implacável determinação do jovem Promotor público da cidade, recentemente nomeado, não por critérios políticos, mercê de concurso público, o Delegado sequer teria ido ao local do crime colher provas materiais e subjetivas para abertura do inquérito. Razões, tinha-as de sobra: Contava apenas com um escrivão e três policiais para atender toda a comunidade de Laranjeiras, cuja população crescia assustadoramente acompanhando o ritmo crescente da economia. Receava ainda – esse motivo não lhe deixava dormir - investigar o crime e descobrir que pessoas influentes da sociedade local pudessem estar envolvidas. Entretanto, as ameaças do jovem Promotor em processar o Delegado por omissão ou desdita, fez-lhe ordenar as investigações preliminares.
Junto com Esperidião e Getúlio, dirigiu-se ao local do crime.
Padre Fausto, informado dos acontecimentos e da determinação do jovem Promotor chamou Chiquinho e foram até a delegacia conversar com o Delegado.
-- Boa tarde doutor, gostaria de lhe pedir um favor que se o atendesse ficar-lhe-ia muito agradecido.
-- Pois não padre, sente-se, por favor. Qual é o problema?
-- O Senhor, mais do que ninguém sabe das encrencas que Sá Lorena teve com tantas pessoas, e até comigo mesmo. Quantas vezes ela foi intimada para comparecer nesta delegacia por questões pessoais sobre divisão de terras com seu Quincas que a mim não dizem respeito algum, e também com referências maldosas a minha pessoa. Porém, por motivo de lealdade com Juvenal, com quem sempre tive um relacionamento cordial de amizade, dever de minhas funções sacerdotais para com meus paroquianos e a comunidade que represento, peço-lhe que investigue sua morte sem isenção de culpa a qualquer pessoa envolvida. Seja rico, poderoso, pobre ou cachacista. Peço-lhe, e espero que o senhor seja imparcial, ao mesmo tempo comedido com referência às acusações que alguns inimigos cachacistas poderão fazer contra minha pessoa. O senhor tem conhecimento e suficientes razões para não acreditar nas infâmias que correm pela cidade, deflagrada por dois ou três malfeitores, a meu respeito. Jamais pratiquei atos contrários à minha conduta sacerdotal. Mas algumas blasfêmias que a própria Sá Lorena se encarregava de difundir pela cidade, não me dizem respeito! Quero que o senhor pondere nesse sentido. Nada tenho a ver com sua morte!
-- Padre, disse o delegado imprudente! Jamais me desviei de minhas funções policiais. Já mandei investigar o crime, não obstante carecer de funcionários capazes de executar essa função. Por determinação do Doutor Procurador, abri o inquérito policial, e determinei ao Esperidião, soldado e investigador experiente, competente e único funcionário para esse tipo de ação - que o senhor o conhece muito bem, que tomasse o depoimento das pessoas com as quais Sá Lorena teve envolvimento ultimamente, inclusive, o senhor! Aproveitando sua presença aqui e caso não se importe, gostaria de ouvi-lo agora, já que o senhor se encontrou com Sá Lorena no dia da morte de Lampião, e mantém com Juvenal relacionamento de grande amizade. Gostaria de ouvi-lo agora. Pode ser? O que o senhor acha? É meu dever e obrigação esclarecer este crime, padre, tal qual o senhor me pediu. Doa a quem doer. Fique tranquilo que o criminoso será encontrado, preso, processado e julgado na forma da lei.
Padre Fausto, atônito e confuso concordou em dar seu depoimento. Apenas confirmou o que já havia dito ao Delegado nas vezes anteriores em que teve de comparecer à Delegacia sobre denúncias de paroquianos. Sobre o crime, disse apenas que no dia seguinte à morte de Sá Lorena esteve em sua casa para levar alívio espiritual a Juvenal, e que ouviu comentários de algumas pessoas presentes que o autor do homicídio teria sido Tonho. Nada mais disse.
Deixou a delegacia preocupado com a disposição do Delegado em esclarecer o crime. Esse não era o seu desejo.
Corria à boca pequena pela cidade que o assassinato de Sá Lorena teria sido encomendado pelo coronel Saturnino, a mando de Virgulino, antes de morrer. Entretanto, uns diziam ter sido Tonho, querendo se vingar das mentiras que ela espalhara pela vila dizendo que ele era corno, enquanto outros afirmavam que era seu Quincas o mandante pelas dezenas de processos que ela moveu contra ele por invasão de suas terras...Os mais cépticos entretanto, apontavam padre Fausto e dona Elvira como os verdadeiros assassinos de Sá Lorena, por motivos passionais.
A morte de Sá Lorena, contudo era um mistério.
No velório compareceram apenas alguns vizinhos, sitiantes da redondeza. Dos parentes de Nhá Marina, apenas o neto Agapito esteve presente, não obstante o descontentamento da família que não queria qualquer vínculo de amizade com ela. Seu Quincas, Maninha, dona Elvira, Zé vaqueiro, Geremias e os outros vizinhos só mandaram flores. Mãe Crisalda, como sempre era seu costume trazia às mãos um ramo bento de flores silvestres para ser lançado na cova rasa sobre a rede que transportava o corpo.
Padre Fausto, que desde a manhãzinha esteve ao lado de Juvenal consagrando o corpo da defunta, iniciou um réquiem que foi acompanhado pelas poucas pessoas presentes, afirmando que todos deveriam se comportar como cristãos e perdoar as infâmias que lhes foram proferidas pela falecida, e que não dessem ouvidos a algumas pessoas inconvenientes que que espalhavam mentiras sobre seu relacionamento com Sá Lorena.
-- Tudo é infâmia de dois cachacistas, desordeiros e infiéis! Deus haverá de lhes perdoar pelos pecados que cometem! Afirmava padre Fausto diante do corpo da falecida.
Juvenal cabisbaixo e fingindo-se tristonho ouvia e repetia atentamente as orações, e de vez em quando lançava um olhar desconfiado sobre o padre que lhe retribuía com um piscar de olhos, e o advertia afirmando que ficasse tranquilo que nada haveria de lhe acontecer.
-- Tudo foi vontade de Deus. Prosseguia o padre com o sermão. Só ele faz justiça, dizia sob olhares encarniçados dos presentes que se entreolhavam duvidando de sua sinceridade. A maldição em forma de revanche atinge àqueles que blasfemam contra pessoas dignas e inocentes. Afirmava o padre com a Bíblia à mão, crédulo que suas atingissem a consciência dos que ali estavam.
O corpo de Sá Lorena foi sepultado no pequeno cemitério atrás da casa aonde moravam e onde já haviam sido enterradas outras pessoas de sua família: Pai, mãe e irmãos. Ela era a última sobrevivente da família que suportou a seca que assolou o sertão naquele ano.
Chegava ao fim o clã de Sá Lorena.
A noite se aproximou em Poços dos Anjos, tal qual fora o dia: Inquietação, medo e angústia.
José Miranda Filho, ex-Presidente e fundador do PMDB em São Caetano do Sul, Venerável Mestre da Loja Maçônica G. Mazzini (grau 33), é advogado e contador, colabora com o jornal ABC Reporter e atua como Diretor Financeiro do Conselho Gestor do Hospital Benificente São Caetano. Posta no Blog do Miranda.
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