Milkmaid - Johannes Vermeer 45,5x 41 cm, 1658-1660 |
Santa
Chamava-se Dora, mas foi apelidada de Santa pela sua tristeza. Era a quarta filha de um lavrador em sua cidade natal, mas a primeira vez que pegou pesado no trabalho foi no primeiro emprego, aos dezoito anos, já como empregada doméstica numa residência em São Paulo. Chegou à metrópole no meio dos anos 50 decidida a tudo, enfrentando uma viagem de quinze dias de pau-de-arara e trem pelas terras da Bahia e Minas. Se existiu de verdade, e ainda fosse viva, completaria 60 anos pelo Natal.
Embora saiba tudo ou quase tudo sobre Santa, nunca a vi em carne e osso. A sua história me foi contada por um antigo namorado, Jacinto, companheiro do quarto ao lado quando morei certa época numa pensão na Avenida Celso Garcia. Segundo ele, os dois vieram juntos. Na viagem, nasceu mais que uma sólida amizade. Despediram-se, no entanto, na estação ferroviária do Brás, e cada um buscou o seu próprio caminho. Antes, porém, ela falou de uma ocupação, numa casa de família, o porto seguro. Já em sua busca, ele lembrava por alto o mapa da moradia -- um sobrado branco com faixas amarelas e jardim na frente, na Bela Vista.
Em dias de folga, Jacinto vestia a roupa domingueira e saía naquele rumo. Descia na Estação da Luz, passava em frente à rodoviária toda colorida, caminhava pela Avenida Duque de Caxias, guiado por uma onda de esperança, como se tivesse a certeza que um dia ia deparar com Santa pelo caminho.
-- Até as pedras se encontram, imagine gente igual a nós que vivemos para lá e para cá – me disse.
Passou a andar em ruas cheias de casas, na Bela Vista. Olhava dentro de cada jardim esperando de uma hora para outra a imagem de Santa cobrir toda a dimensão de suas retinas. Chegava à Praça da Sé, cheia de gente nas manhãs de domingo. Aí, rodeava a catedral e já sabia o caminho até a Avenida Brigadeiro Luís Antônio, esperando em vão a sua forte presença.
Uma vez viu uma mulher entre galhos verdes e flores de um jardim bem-cuidado. Molhava as plantas segurando uma mangueira comprida. De longe, lembrava o perfil e feições de Santa. Ele quis gritar pelas frestas do portão, mas ficou com receio. Ficou ali rodando feito peru tonto até o anoitecer.
-- A pele era clara e tinha o corpo cheio como o de Santa – na hora sonhou.
Não era, infelizmente. Tempos depois, um colega de trabalho de Jacinto me colocou a par de mais acontecimentos. Disse que o destino havia desmarcado o encontro dos dois para outra reencarnação.
-- Talvez, quem sabe, numa próxima...
Santa também folgava aos domingos. Vestia a melhor roupa e quase sempre chegava até o largo do Arouche. Na volta, ao cair da tarde, entrava na igreja da Consolação. Ali, conheceu um rapaz. Era Lírio, mestre de obras numa construção em Higienópolis. Depois da missa, Lírio a esperava na escadaria da igreja. Deu um leve puxão nos seus cabelos e pediu gentilmente para acompanhá-la pela mesma trajetória. Na Rua Santo Antônio passou a mão em seus cabelos. A partir daí, Santa achava que o domingo não chegava mais.
Um dia, ela sentiu leve tontura na cozinha. Sentou numa cadeira na esperança de que era uma coisa passageira. Foi melhorando, mas descobriu que estava grávida. Conhecia os sintomas e sabia que ia sofrer. Passou a comer de tudo. Adorava pão e doce. A patroa passou a guardar comidas em lugares trancados e colocou um cadeado na geladeira. Santa sentia o cheiro passar pelas frestas quando deitava no cubículo próximo à cozinha e não conseguia mais pegar no sono.
As madrugadas pareciam durar meses. Nas poucas horas insones, tinha o pressentimento de que a criança nasceria morta e ela também morreria. Acertou na primeira idéia. Nem Lírio teve conhecimento de um filho gerado e perdido, nem Jacinto encontraria mais o ente que era uma visagem ou alento na sua solidão.
As lembranças de Santa não vieram ao acaso, embora me recorde sempre de Jacinto, que vive hoje em São Miguel Paulista. Em certas noites, continuo a indagar se ela existiu mesmo ou foi delírio de um jovem migrante solitário. Mas isso é uma dúvida tão imensa como Deus.
Chamava-se Dora, mas foi apelidada de Santa pela sua tristeza. Era a quarta filha de um lavrador em sua cidade natal, mas a primeira vez que pegou pesado no trabalho foi no primeiro emprego, aos dezoito anos, já como empregada doméstica numa residência em São Paulo. Chegou à metrópole no meio dos anos 50 decidida a tudo, enfrentando uma viagem de quinze dias de pau-de-arara e trem pelas terras da Bahia e Minas. Se existiu de verdade, e ainda fosse viva, completaria 60 anos pelo Natal.
Embora saiba tudo ou quase tudo sobre Santa, nunca a vi em carne e osso. A sua história me foi contada por um antigo namorado, Jacinto, companheiro do quarto ao lado quando morei certa época numa pensão na Avenida Celso Garcia. Segundo ele, os dois vieram juntos. Na viagem, nasceu mais que uma sólida amizade. Despediram-se, no entanto, na estação ferroviária do Brás, e cada um buscou o seu próprio caminho. Antes, porém, ela falou de uma ocupação, numa casa de família, o porto seguro. Já em sua busca, ele lembrava por alto o mapa da moradia -- um sobrado branco com faixas amarelas e jardim na frente, na Bela Vista.
Em dias de folga, Jacinto vestia a roupa domingueira e saía naquele rumo. Descia na Estação da Luz, passava em frente à rodoviária toda colorida, caminhava pela Avenida Duque de Caxias, guiado por uma onda de esperança, como se tivesse a certeza que um dia ia deparar com Santa pelo caminho.
-- Até as pedras se encontram, imagine gente igual a nós que vivemos para lá e para cá – me disse.
Passou a andar em ruas cheias de casas, na Bela Vista. Olhava dentro de cada jardim esperando de uma hora para outra a imagem de Santa cobrir toda a dimensão de suas retinas. Chegava à Praça da Sé, cheia de gente nas manhãs de domingo. Aí, rodeava a catedral e já sabia o caminho até a Avenida Brigadeiro Luís Antônio, esperando em vão a sua forte presença.
Uma vez viu uma mulher entre galhos verdes e flores de um jardim bem-cuidado. Molhava as plantas segurando uma mangueira comprida. De longe, lembrava o perfil e feições de Santa. Ele quis gritar pelas frestas do portão, mas ficou com receio. Ficou ali rodando feito peru tonto até o anoitecer.
-- A pele era clara e tinha o corpo cheio como o de Santa – na hora sonhou.
Não era, infelizmente. Tempos depois, um colega de trabalho de Jacinto me colocou a par de mais acontecimentos. Disse que o destino havia desmarcado o encontro dos dois para outra reencarnação.
-- Talvez, quem sabe, numa próxima...
Santa também folgava aos domingos. Vestia a melhor roupa e quase sempre chegava até o largo do Arouche. Na volta, ao cair da tarde, entrava na igreja da Consolação. Ali, conheceu um rapaz. Era Lírio, mestre de obras numa construção em Higienópolis. Depois da missa, Lírio a esperava na escadaria da igreja. Deu um leve puxão nos seus cabelos e pediu gentilmente para acompanhá-la pela mesma trajetória. Na Rua Santo Antônio passou a mão em seus cabelos. A partir daí, Santa achava que o domingo não chegava mais.
Um dia, ela sentiu leve tontura na cozinha. Sentou numa cadeira na esperança de que era uma coisa passageira. Foi melhorando, mas descobriu que estava grávida. Conhecia os sintomas e sabia que ia sofrer. Passou a comer de tudo. Adorava pão e doce. A patroa passou a guardar comidas em lugares trancados e colocou um cadeado na geladeira. Santa sentia o cheiro passar pelas frestas quando deitava no cubículo próximo à cozinha e não conseguia mais pegar no sono.
As madrugadas pareciam durar meses. Nas poucas horas insones, tinha o pressentimento de que a criança nasceria morta e ela também morreria. Acertou na primeira idéia. Nem Lírio teve conhecimento de um filho gerado e perdido, nem Jacinto encontraria mais o ente que era uma visagem ou alento na sua solidão.
As lembranças de Santa não vieram ao acaso, embora me recorde sempre de Jacinto, que vive hoje em São Miguel Paulista. Em certas noites, continuo a indagar se ela existiu mesmo ou foi delírio de um jovem migrante solitário. Mas isso é uma dúvida tão imensa como Deus.
1 comment:
Santa existiu mesmo e nao só no delírio do Jacinto. Eu mesmo cheguei a vê-la caminhando na Treze de Maio, na calçada oposta a Sinagoga já quase em frente ao Ferros atravessando em direção ao Planeta, certamente a busca de algum autografo. Passei por ela, nao me reconheceu, segui para meu destino, passando pelo cine clube Biju, aportei no Redondo para um chope antes da assembléia que decidiria pela greve dos jornalistas como protesto pela morte do Vlado (ou era do Manoel Fiel Filho?). NiVA.
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