Av. Conde Francisco Matarazzo, 1968 ~ by Evanil Assis |
Pensão da Dona Marta. Madrugada fria e silenciosa. A neblina escura encobria o imóvel isolado do lado esquerdo da Rua Ceará. O prédio estava localizado numa esquina da Praça dos Estados, entre as Ruas Ceará e Bahia. As casas eram, enquanto não demolidas, assobradadas de estilos semelhantes, construídas que foram ao mesmo tempo, no século passado, para os empregados de uma empresa química que havia se instalado no município. As ruas circundantes eram representadas pelos estados brasileiros: Ceará, Bahia, Pernambuco, Rio Grande do Sul, Rio de Janeiro, Espírito Santo, Amazonas, Alagoas, Sergipe, Paraíba, Maranhão, Minas Gerais e Rio Grande do Norte. Não havia o nome do Estado de Tocantins, esse Estado ainda não existia, na época era um pequeno território. Na praça restava de pé apenas a Pensão da Dona Marta, um casarão de estilo romano, que outrora havia servido de residência de um dos diretores da Indústria Química São Caetano. Hoje é apenas uma simples moradia de dez quartos, seis banheiros e várias dependências que se transformou na pensão da Praça dos Estados ou da Rua Ceará, que todos conheciam como a pensão de Dona Marta. Os outros imóveis haviam sido demolidos, impulsionados por uma desapropriação duvidosa e repleta de polêmicas judiciais, para a construção de um Parque Ecológico. De todas as construções existentes, apenas aquele sobrado sobreviveu – por enquanto – amparado por uma liminar judicial sem data para julgamento do mérito. Seu destino, porém, estava traçado: fatalmente ele desapareceria e restaria apenas a história que seria contada por aqueles que por lá viveram e transitaram pelos seus longos corredores de pisos de mármore. Sua construção de estilo romano lembrava mais um pequeno castelo medieval.
Dona Marta, uma senhora simpática, de pele clara, olhos brilhantes e cabelos louros oxigenados, estava sempre atenta àqueles que se aproximavam da entrada da casa, notadamente algum estranho que poderia ser o Oficial de Justiça ou mesmo algum cobrador. A qualquer momento estaria recebendo a notificação para desocupação do imóvel. Já havia combinado com seu advogado que receberia a citação sem qualquer questionamento. Aliás, foi o próprio advogado que lhe orientou não obstruir o trabalho do Oficial. Assim ele teria mais condições de atuar no processo e pleitear uma indenização melhor, mais justa e real, proporcional ao tempo em que ela mantinha a pensão no local. Pediria uma indenização que cobrisse o tempo de permanência, o lucro cessante, as benfeitorias eventualmente realizadas, fundo de comércio, etc. Ela queria ter a certeza que não seria processada à revelia e ver desmoronado o sonho que durante tantos anos acalentou: possuir sua casa própria.
Finalmente, naquela manhã de 16 de novembro, um dia após o aniversário da proclamação da República, Dona Marta foi notificada para desocupar o imóvel no prazo de 48 horas. Ela não era a proprietária, apenas a locatária, mas arrogava-se o direito de pleitear uma indenização pelo tempo de permanência no imóvel, pelas benfeitorias realizadas e principalmente, pelo fundo de comércio, já que sua pensão era legal e tinha registro na Junta Comercial, pagava tributos federais, estaduais e municipais. Coisa que ela sempre resmungou, mas pagava! Afinal não tinha porque não pagar.
No momento em que o Oficial de Justiça pediu-lhe que assinasse no local indicado, seu coração se partiu em dois: um pedaço ficaria ali, o outro partiria com ela, sabe Deus para onde. Em silêncio, rogou ao Deus todo poderoso que iluminasse seu caminho que haveria de percorrer de agora em diante. As lágrimas lhe corriam dos olhos azuis e brilhantes, rolando na face cansada e encarquilhada pelos anos de trabalho e sofrimento, apesar da pouca idade. Dona Marta não tinha mais do que 45 anos, mas já se notava em seu rosto rugoso o desapontamento de alguma coisa que não realizou e teve de deixar para trás. A pensão era tudo que ela tinha na vida. Era seu, meio de vida, sua alegria e tristeza, seu passatempo e sua esperança.
Vencido o prazo para desocupar o imóvel, Dona Marta viu-se à beira de uma depressão. Não conseguia alugar outro imóvel e transferir a pensão. Alguns clientes se foram, outros procuraram outros lugares. Não lhe restou outra saída senão pagar algumas dívidas com a indenização recebida, comprar alguma coisa para si, de que há muito necessitava quitar os carnês do Baú da Felicidade, das casas Bahia, das Lojas Pernambucanas e os honorários do advogado. O que fazer com o resto do dinheiro de tão pouco que sobrou?
De repente uma ideia veio-lhe à cabeça. Com os trocados que lhe restou da indenização, abriu uma pequena conta de poupança na Caixa Econômica e adquiriu cinco títulos do fundo de capitalização do Baú da Felicidade. Arranjou um emprego de garçonete numa lanchonete da cidade e foi recomeçar a vida, afinal tinha apenas quarenta e cinco anos de idade. Era solteira, não dependia de ninguém e também não tinha ninguém que dela dependesse. .
Os títulos de capitalização ofereciam prêmios mensais para quem pagasse em dia. Durante cinco anos seguidos Dona Marta religiosamente, todos os meses cumpria sua obrigação. Dirigia-se à Loja do Baú mais próxima do local onde trabalhava e efetuava o pagamento.
Muito tempo se passou!
Para sua surpresa e alegria, numa tarde de primavera, sol ardente por causa do horário de verão, ao retornar à sua casa cansada e desanimada, notou algo em baixo do tapete da porta. Era um aviso de comparecimento aos Correios, deixado pelo carteiro por não haver encontrado ninguém. Dizia o aviso que ela deveria dirigir-se ao escritório central e tomar ciência do conteúdo do telegrama. No dia seguinte, na hora do almoço, único momento livre de que dispunha, dirigiu-se aos correios, no Vale do Anhangabaú e pegou o telegrama. Leu-o! Não pode conter a alegria quando soube que havia ganhado uma casa no valor de R$ 60.000,00, do Baú da Felicidade.
Não acreditava. Não conseguia ficar de pé. Seus lábios tremiam de alegria. Leu e releu várias vezes até certificar-se de que era verdade. Nos dias seguintes não conseguira dormir aguardando a chamada para comparecer à sede do Baú, para tirar fotografias, conceder entrevistas, aparecer na TV e receber as chaves da tão sonhada casa própria. Afinal, Deus havia ouvido suas preces e realizado seu sonho.
No dia aprazado lá foi Dona Marta. As câmaras posicionadas em diferentes ângulos focalizavam-na em todas as direções. O entrevistador não lhe dava sossego. Solicitava-lhe a todo o momento para repetir a frase: “O Baú é o melhor. Foi o Baú que me deu a casa própria” e “Ninguém deixe de comprar o Carnê do Baú”, etc, etc. E tudo isso ela fazia com tamanha dedicação e boa vontade que lhe apelidaram de “A Vendedora do Baú”.
Foi morar em Sapopemba, bairro, não muito distante do centro, mas alegre e cheio de vida. Compraram-lhe uma casa simples, mas bem confortável. Três quartos, cozinha, banheiro, despensa, área de serviços e um bom quintal, onde poderia criar uma galinha ou plantar algumas verduras e legumes.
Sua vida se transformou ainda mais quando ela começou a frequentar a Igreja “Evangélicos de Cristo”, uma afiliada da Igreja Renascer, aonde todas as sexta feiras à noite ela participava da sessão do descarrego. Aos sábados ia ao baile da terceira idade com uma amiga e vizinha que conhecera. Certa noite, num baile da primavera, conheceu um senhor viúvo de nome Joaquim que a tirou para dançar. Ele tinha aproximadamente 60 anos de idade. Homem bom, honesto, sério, educado e bem intencionado. Ela sempre o via nos bailes, mas ele nunca a havia despertado qualquer interesse até aquela noite. Foi tudo de repente. Conversaram, dançaram, encontraram-se nos próximos bailes e começaram namorar. Dois anos depois se casaram.
Mudaram em seguida para a Capital Federal. Ele era servidor público, já aposentado, mas exercia o cargo de Assistente Parlamentar, no gabinete de um deputado, seu amigo. Optaram por não ter filhos porque ele já tinha dois do casamento anterior. Ela, por motivo de idade, também não queria correr risco com a gravidez aos quase 50 anos. Estava feliz assim e assim teria que ser. Só “Ele”, Deus, como costumava dizer, tem o poder de fazer as pessoas felizes ou infelizes. Moram numa casa simples, cercada de flores e árvores, presentes da natureza, á beira da estrada que leva ao lago Paranoá, aonde todos os fins de semana passeiam de barco sobre suas águas serenas. Nas noites de luar quando as águas do Paranoá devolvem os reflexos das luzes a dezenas de esperançosos crendeiros que permanecem em suas margens elevando preces à procura de algum fenômeno para a cura dos males do amor, ou rogando para que a natureza lhes proporcione a realização de um desejo qualquer, eles simplesmente sorriem e agradecem, lembrando a trajetória da vida.
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