Definição

... da totalidade das coisas e dos seres, do total das coisas e dos seres, do que é objeto de todo o discurso, da totalidade das coisas concretas ou abstratas, sem faltar nenhuma, de todos os atributos e qualidades, de todas as pessoas, de todo mundo, do que é importante, do que é essencial, do que realmente conta...
Em associação com Casa Pyndahýba Editora
Ano VI Número 63 - Março 2014

Conto - José Miranda Filho

Cenas Brasileiras 34 - Juraci Dórea

O Retrato do Sertão – 13

Sá Lorena ficou estática, eufórica e ao mesmo tempo abestalhada após ter a confirmação da morte de Lampião, sua mulher e alguns cabras dele. Não conseguia esconder de ninguém o entusiasmo exagerado que lhe invadiu o peito naquela manhã de incertezas e aflições que passava o povo de Laranjeiras, mormente os líderes presentes, entre eles, padre Fausto. Estava livre finalmente, para falar o que sabia da vida pregressa de Tonho, Geraldina, seu Quincas, padre Fausto, dona Elvira, ...e de tantas outras pessoas de quem ela não simpatizava. Só não tinha motivos para falar de Nhá Marina porque ela não era do seu tempo, pouco sabia do seu passado; apenas sabia que era íntima de Lampião e frequentava as festas que ele promovia. Mesmo assim, inconformada por não a deixarem aproximar-se de seu corpo quando ela morreu e de ter sido desafeiçoada na festa de casamento de Tonho, tinha sim, alguns motivos para destilar seu veneno, não contra ela, mas algumas pessoas de sua família, principalmente Agamenon e Agaciel, seus filhos bastardos, quando se referia a eles. Também tinha uma ojeriza de fazer dó de dona Marina, por quem nutria um ódio diabólico apenas por ser ela amiga de seu Quincas. Mas ela preferiu espalhar suas matracas e o sentimento de raiva sobre Geraldina por ser ela a mais bonita e uma das mais graciosas moças de Poços dos Anjos. De padre Fausto, já havia espalhado todos os boatos de que sabia.

Tempos atrás, Lampião, a pedido de um coiteiro amigo que não aceitava o procedimento espúrio de Sá Lorena de espalhar boatos maldosos contra pessoas de sua amizade, aceitou dar-lhe um “chega-prá-lá”: Lampião ordenou alguns de seus capangas ameaçá-la de seqüestro, apenas para intimidá-la. Três cabras sob as ordens de Corisco investiram contra sua propriedade queimando o pouco da plantação de feijão e milho que ainda restava ser colhida. Ameaçaram-na de morte se não parasse de matraquear contra as pessoas recomendadas.

Sá Lorena, esbravejava, chorava e pedia clemência. Ameaçava contar tudo prá coronel Saturnino.
Amendontrada, e sentindo-se desamparada do marido que tudo via, ouvia e nada fazia, retraiu-se prometendo obedecer as ordens de Lampião.
Ajoelhando-se aos pés de Corisco jurou que jamais abriria a boca para falar mal de qualquer pessoa, principalmente de quem ele pedia. No rol das recomendações, em primeiro lugar figuarava padre Fausto!

Confirmada a morte de Lampião, agora ela estava livre e descompromissada com o juramento que fizera, que com certeza, jamais cumpriria.

− Falar da vida das pessoas de quem não gosto... Isso é ridiculo! E se merecer? Não vou me intimidar com as ameaças de padre “merda nenhuma” que me ameaçou de excomunhão, ou de quem quer que seja... Não bastasse o ato covarde desse bandido infeliz que destruiu minha plantação e que acaba de ser morto, ainda vem esse infeliz sacerdotizinho travestido de São Francisco querer me ridicularizar perante minhas amigas! Que vá para o inferno, também!...Se me permitissem, e eu tivesse a oportunidade de ver os corpos de Lampião e Maria Bonita, certamente cuspiria em seus rostos e mandaria suas almas queimarem nas profundezas do inferno para pagar pelos malefícios que causou a mim e a tantas outras pessoas inocentes. Gritava Sá Lorena, chorando e rindo ao mesmo tempo.

− Bandido, malfeitor, mau–caráter...assassino...Que vá para a puta que o pariu, safado! Que o Diabo o carregue e seus restos sejam queimados na fornalha da desgraça... E, padre Fausto, também!

Sá Lorena estava visivelmente irritadadíssima!

Metade do povo de Laranjeiras conhecia a fama maliciosa, porém desconhecia o motivo de tanto ódio que ela sentia de Lampião e padre Fausto... De seu Quincas, sabia dos entreveros que ambos tiveram no passado sobre divisão de terras... De Tonho e Geraldina, alguns duvidavam por ela discordar do casamento deles, sabe-se lá porquê motivo...De dona Elvira, sabia que era pelo ciúme doentio da amizade dela com padre Fausto...De Maninha, era porquê ela sabia do seu comportamento impróprio com os colegas da escola, quando ambas frequentaram a mesma classe. Costumes inadequados à época!.

E, assim ela ia desfilando sua verborragia ferina contra as pessoas de quem não gostava. Podia ser qualquer um, desde que desse algum motivo, ou que a olhasse de soslaio. Sabia da vida particular de quase todos os moradores da cidade, principalmente daqueles que tinham poderes ou destaque na sociedade: Como viviam...aonde iam...com quem se encontravam...

Padre Fausto ultimamente estava sendo a vítima, após tê-la advertido publicamente sobre fatos passados e falar de sua amizade com dona Elvira.

A mulher se enfureceu.. endoidou... Prometeu vingar-se.

Chegou a minha vez! Dizia, enfurecida.

Dispersada a multidão a pedido do Prefeito após confirmada a morte de Lampião durante o tiroteio na fazenda de coronel José Pereira Lima, todos se dirigiram para suas casas, menos ela e o infeliz marido.
Contrariando a vontade de Juvenal que a queria longe do padre, ela insistia em se encontrar com ele para dizer-lhe umas verdades.

Estava realmente fora de si.

Padre Fausto se esquivava dela de todo jeito. Não tinha mais argumentos persuadíveis capazes de fazê-la afastar-se dali.
Vencido pela insistência de Sá Lorena e culpabilidade do seu passado de consciência pecaminosa pouco recomendável, concordou em se encontrarem a sós, em frente à casa paroquial. Faria isso contra a vontade, mais por temer as ameaças dela divulgar fatos passados de ambos, boatos que já começavam a se espalhar entre os paroquianos.

− Juro por tudo quanto é sagrado padre, que desta boca jamais sairá uma palavra desairosa a seu respeito! Juro e prometo!...O senhor pode dormir tranqüilo que nada direi sobre nossos encontros na sacristia da igreja após as missas das 17:00 horas, quando o senhor ainda era seminarista. Lembra-se? .

O padre pirou!

Não esperava ouvir confidências tão graves e asperosas de tempos passados. Ele já tinha esquecido o passado. Já havia pedido perdão a Deus e se arrependido.

Sentindo-se porém, culpado das aventuras amorosas e dos assédios incontáveis que tivera quando seminarista, não só com ela mas com outras beatas frequentadoras da Igreja, e das ameaças maldosas que acabara de ouvir, para evitar escândalos e repercussões negativas sobre sua vida pregressa que poderia levar sua carreira política e sacerdotal ao fracasso, agarrou-a pelos cabelos, puxou-a para dentro da casa paroquial e ameaçou-a de excomunhão caso ela não parasse de uma vez por todas de revelar os segredos de que sabia.

− A senhora já se confessou tantas vezes e pediu perdão a Deus pelo passado. Concedí-lhe a penitência, perdoei-a em nome de Cristo...Por que a senhora quer revelar tudo isso agora? Gritava o padre, aflito!

Sá Lorena só jurava nada revelar.

− De que vale seu juramento se tantas vezes a senhora se confessou
perante a Deus afirmando que havia se arrependido e que jamais revelaria segrêdo algum? Interrompia o padre entre um juramento e outro de Sá Lorena.

Duvidando das promessas que ela jamais cumprira, mesmo assim a perdoou mais uma vez entre centenas de outras que já havia procedido. Abençou-a, pedindo-lhe em nome do Senhor que se calasse para todo o sempre, conforme manda o segregal ato confissional que acabara mais uma vez de lhe conceder.

− Como penitência, Sá Lorena, peço-lhe apenas que se abstenha de falar da vida dos outros, principalmente do nosso passado. A senhora sabe mais do que ninguém como eu era assediado e desejado pelas mulheres naquele tempo. Por sua causa fui castiagado no Seminário, quase abandonei a batina e a vida sacerdotal. Pedí perdão a Deus pelos atos que pratiquei e seguí meu destino! A senhora está casada, bem casada com uma pessoa que eu admiro e respeito...Esqueça de vez...tire definitivamente de sua cabeça essa crueldade...esse sentimento infeliz...esse desejo ardente que existiu entre nós dois, coisas de jovens que desconheciam as consequëncias futuras. Hoje eu sou padre, sirvo a Deus e a senhora é uma mulher casada! Coisas de juventude! Esqaueça-as, pelo amor de Deus!

O sol quente da tarde incandescia o horizonte carregado de incertezas.

Padre Fausto chamou Chiquinho que estava na porta da Igreja organizando a fila dos fiéis que iam se consagrar naquela tarde, e constrangido, a ponto de não disfarçar as preocupações e os tantos aborrecimentos, disse:

− Há coisas mais importantes e urgentes a fazer: Batizar, crismar, confessar e realizar casamentos.

Chiquinho não entendeu a razão do padre lhe dirigir dessa maneira. Notou no seu comportamento uma preocupação que nunca vira antes. Contudo, não o questionou por isso! Continuou com seus afazeres, aliás padre Fausto era o único pároco da cidade e contava apenas com ele para auxiliá-lo nos trabalhos da Igreja. Alguns paroquianos às vezes o ajudavam, como dona Elvira, Geraldina, Maninha e o filho dela, mas, com exceção de dona Elvira, todos haviam se refugiados em suas casas temendo eventuais represálias dos simpatizantes de Lampião.

Padre Fausto sentia-se bastante incomodado, nervoso e estressado.

A fila aumentava, e ele cada vez mais impaciente, nervoso e preocupado, já estava perdendo a paciência pela desordem.

− Fiquem um atrás do outro, em fila, senão nada posso fazer, gritava!

− Dona Elvira, por favor, bota água benta na pia bastimal, depressa!

− Chiquinho, em meu nome, reza o Pai-Nosso com aquele grupo que vai se casar, e prepara-o para a cerimônia. Ordenava, nitidamente estressado.

Sá Lorena, sentindo-se desprezada, e vendo a aflição do padre, sorrateiramente aproximou-se dele e se ofereceu para ajudá-lo.

− Agradeço-lhe de coração, mas não é necessário. Peço-lhe, por favor, que a senhora se retire e vá para sua casa descansar com seu marido. Não comente com ninguém o que acabou de me dizer e confessar. A senhora jurou várias vezes perante Cristo que jamais falaria da vida alheia e principalmente do nosso passado. Obedeça a voz de Cristo Sá Lorena! Só lhe peço isso!

Com o cálice cheio de óstias consagradas que carregava à mão esquerda, afastou-se dela e disse:

− Chiquinho, dona Elvira e eu haveremos de dar conta de tudo isso! Pelo amor de Deus, fique longe desse povo! Vá embora, e que Deus lhe perdoe pelos seus pecados!.

Sá Lorena se irritava cada vez mais por sentir-se escamoteada.

− Meus pecados... e os dele? Exclamou, nervosa!

− Dona Elvira, vem aqui por favor! ...Cuida da pia batismal. Traga mais um pouco de sal e acenda a vela para batizarmos essas crianças... Reza junto com os pais delas uma Ave-Maria, enquanto eu abençôo e realizo o casamento desse grupo. Pedia aflito, padre Fausto..

A noite já se aproximava preguiçosamente sobre o horizonte quente quando padre Fausto exausto, porém aliviado dos afazeres sacerdotais, dirigiu-se a Chiquinho e pediu:

− Prepara o altar da missa das vinte horas para eu poder consagrar todos os atos realizados nesta tarde.

Sá Lorena não escondia o ódio do padre, mas não arredava do pé dele que a todo instante lhe pedia para calar-se e ir embora.

Padre Fausto já estava de saco cheio de tanto assédio quando de repente, Juvenal pressentindo a explosão raivosa dele, puxou-a pelo braço e se retiraram. Montaram na carroça e voltaram para o sítio.

A noite se aproximava lentamente enquanto a cerimônia religiosa chegava ao fim.

Padre Fausto exausto dos afazeres do dia recusou o conselho de Chiquinho para relaxar na rede que ele armara no alpendre da casa paroquial embaixo da cajazeira frondosa e carregada de frutos. Disse que estava bem, mesmo contorcendo-se de dores que sentia pelo corpo inteiro. Persuadiu Chiquinho a lhe preparar a carroça, afirmando que iria até a venda de Zeferino tomar seu aperitivo costumeiro e refazer-se fisicamente do cansaço.

− Irei sozinho, dessa vez, Chiquinho. Afinal, foi um dia tempestuoso que jamais passei na vida. Nunca tive tantos aborrecimentos quanto os tive nesta tarde. A morte de Lampião...Sá Lorena me enchendo o saco para nos ajudar...Não se preocupe!. Você fica arrumando os paramentos e guardando os materiais usados nas cerimônias. Há muito trabalho para você fazer, e eu estou realmente bastante estressado. Preciso de um trago para me reanimar e esquecer os problemas do dia. Como o povo de Laranjeiras está apreensivo pela morte de Lampião, é conveniente que me previna de qualquer acontecimento. Carregue minha espingarda. Levarei apenas para me defender de qualquer eventualidade, se necessário. Você é testemunha dos boatos e ameaças que se espalham por aí dando conta de minha amizade com Lampião e dona Elvira, e dos entreveros que tive com Sá Lorena e seu Quincas. Não quero mais aborrecimentos para o meu lado, além dos que já tenho, tampouco quero envolvimento em qualquer acontecimento como desejam meus inimigos. Dê-me a espingarda, por favor!

Pegou a espingarda, colocou-a no ombro e subiu na carroça.

Chiquinho preocupado com o padre que jamais saíra sozinho para tomar seus aperitivos, mas absorto com o trabalho a realizar, recolheu-se à casa paroquial para guardar os castiçais, as velas e todos os sacrossantos instrumentos usados na cerimônia do dia.

A cidade estava escura e triste. O gerador de eletricidade já havia se desligado porque já passava das 22:00 horas. O reboar de trovões enfurecidos no outro lado do horizonte era o único sonido que perturbava o silêncio daquela noite sinistra. As ruas estavam desertas. Ninguém se aventurava sair de casa temendo confusões de facções, pós e contra Lampião.

Algumas tênues estrelas afoitas, burlando a negritude da noite corriam de um canto ao outro do horizonte, esquivando-se dos relâmpagos e trovões, como se anunciassem chuvas se aproximando para gáudio do sertanejo. A escuridão da noite e os trovões incessantes impediam qualquer pessoa de ser reconhecida. Algumas pessoas arriscavam a vida ao andar sem motivo justificado pelas ruas desertas. Já passava das 23:00 horas e a cidade parecia estar tranquila.

Juvenal, às rédeas da carroça puxada pelo cavalo doado por seu Quincas seguia velozmente vencendo cada légua da estrada de chão bruto e seco. Não fosse o cavalo acostumado às idas e vindas à cidade e o desconfôrto causado por Sá Lorena, Juvenal certamente teria pernoitado por lá, provalmente na casa paroquial, como tantas vezes acontecera.

De repente, o estampido dos tiros de uma espingarda se misturou ao lampejo dos relâmpagos e bordoadas de trovões quebrando o silêncio da noite e a tenebrosa escuridão.

Sá Lorena tombou agonizante sobre uma poça de sangue.

José Miranda Filho, ex-Presidente e fundador do PMDB em São Caetano do Sul, Venerável Mestre da Loja Maçônica G. Mazzini (grau 33), é advogado e contador, colabora com o jornal ABC Reporter e atua como Diretor Financeiro do Conselho Gestor do Hospital Benificente São Caetano. Posta no Blog do Miranda.

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