First version of "Bedroom in Arles", 1888 - Van Gogh |
Quarto De Artista
Na Bíblia aparece uma mulher sem nome, que morava em Suném, por isso era chamada de “sunamita”. Era rica e importante e tinha um coração sensível. Percebeu que Eliseu não era uma pessoa comum, era um profeta, alguém especial sobre quem estava a presença do Espírito Santo. Disse então a seu marido : “_ Eis que tenho observado que este homem que passa sempre por nós é um santo homem de Deus.// Façamos-lhe, pois, um pequeno quarto junto ao muro e ali lhe ponhamos uma cama, e uma mesa, e um candeeiro, e há de ser que, vindo ele a nós, para ali se retirará.” (2 Reis, 4,11-19).
Eliseu se sentiu confortável ao se hospedar naquele quarto exclusivamente preparado para ele. Ali havia o leito para o repouso, a cadeira e a mesa onde o profeta poderia fazer uma refeição frugal, escrever suas cartas e ler mensagens à luz de uma lamparina. E tudo junto a um muro forte, de arrimo e sustento.
*
O artista precisa de um quarto, de um lugar trancado a chave, onde possa produzir, libertar a mente para criar sua obra.
Lembrei-me de Van Gogh, o genial pintor impressionista, que em vida experimentou o fracasso e a rejeição. Em 1888 deixou Paris, mudando para o sul da França, onde encontrou um pouco de estabilidade em Arles. Foi ali, quando estava esperando seu amigo, Paul Gauguin, com quem posteriormente se desentendeu, que pintou o quadro “Quarto do Artista em Arles”.
Um quadro tão lindo. Seu próprio ser interior. Um lugar de refúgio. O ventre materno. A janela entreaberta, mas fechada ao mundo exterior por uma densa persiana. A mesa de madeira com vários objetos: jarra de água, copo, escovas. A “cadeira da felicidade”, pintada de amarelo, cor da luz solar. A cama rústica de camponês, onde ele morreu algum tempo depois. A coberta de um vermelho vivo que anima o clima do quadro. As paredes lilases, quase azuis, que fazem contraste com o amarelo. Os retratos acima da cama: um autorretrato, o retrato de uma moça e uma gravura japonesa sobre a cabeceira. Faltou o candeeiro, mas certamente as garrafas serviam de castiçais para velas brancas.
Em carta para Theo, Van Gogh escreveu sobre sua intenção como artista: “_Desta vez é apenas e simplesmente o meu quarto, só aqui a cor deve fazer tudo e, por sua simplificação, dar um estilo mais grandioso às coisas; aqui ela deve sugerir o descanso e o sono. Resumindo, olhar para este quadro deve descansar a mente, ou melhor, a imaginação.”
Recuperado de um colapso nervoso, Van Gogh afirmou: “_Quando vi minhas telas de novo após minha doença, a que me pareceu melhor foi ‘O Quarto’”.
Felizmente, assim como o profeta Eliseu contou com a generosidade da mulher sunamita, Van Gogh teve tintas e um quarto para se abrigar, graças a Theo, seu fiel irmão.
*
Virgínia Woolf, a escritora londrina nascida em 1882, dona de personalidade complexa, que alterava momentos de euforia e alegria com outros de profunda depressão, escreveu o romance O Quarto de Jacob. O personagem foi inspirado no seu irmão Jacob Flanders, que morreu muito jovem. Uma personagem que se expressa através do silêncio. Inspirada nesse livro, Vanessa Bell, também irmã de Virgínia, pintou um quadro que nos remete ao aposento de Jacob: o rapaz sentado numa cadeira, sendo observado por uma mulher, estante de livros aos fundos.
Virgínia escreveu ainda um ensaio intitulado “Um teto todo seu”, onde afirma que é necessário para uma mulher escrever ficção, um espaço todo seu, um teto. Ali a mulher escreveria sobre qualquer assunto de forma livre, revelando seu potencial.
*
Passava pelo centro de São Paulo, em frente à Faculdade de Direito, quando vi o busto do poeta Álvares de Azevedo. Saudei-o com admiração e compaixão. Um mendigo dormia rente ao pedestal de mármore, pobre homem. Pobre poeta romântico, influenciado por Byron e seu mundo sombrio, apresentou em sua obra as características fundamentais e sofridas do mal-do-século. Seus temas foram a dúvida, o amor, a morte. Embora tenha morrido aos vinte anos e seus versos constituam drama adolescente entre desejos e frustrações, vontades e decepções, escreveu poesia de alto nível. No longo poema “Lira dos Vinte Anos”, de 1853, encontramos primeiramente uma epígrafe de Lamartine: “La chaise où je m’assieds, la natte où je me couche,// La table où je t’écris...” (A cadeira onde me sento, a colcha sob a qual me deito,// A mesa de onde te escrevo...). O poema vai retratando o seu quarto de poeta, o seu leito, como no canto XI: “Junto do leito meus poemas dormem,//- O Dante, a Bíblia, Shakespeare e Byron/ Na mesa confundidos. Junto deles/ Meu velho candeeiro se espreguiça/ E parece pedir a formatura.” A formatura lá na faculdade do centro, pensei. E finaliza no canto XIV: “... Eu me esquecia:/ Faz-se noite: traz fogo e dois charutos,/ E na mesa de estudo/ Acende a lâmpada.”
*
O meu é quarto de artista. Nele me trancafio. Sento-me numa cadeira tão firme quanto aquela que o primeiro homem sentou num tronco qualquer da floresta imemorial. À minha frente uma mesa como aquela em que se assentaram os filósofos comensais de O Banquete, de Platão; os discípulos na Santa Ceia ; os cavaleiros do rei Artur, antes de partirem em busca do cálice do Graal. Uma mesa, simples escrivaninha. Sobre ela coloquei um abajur de luz forte, alaranjada, pois gosto de tudo muito claro Alguns livros confundidos, como diria Álvares de Azevedo, que podem ser de Virgílio, os evangelhos, os poetas franceses e brasileiros. Capas e miolos abertos. É nesse quarto que vivo com intensidade aquilo que sou: - uma mente estudiosa e cheia de sede como uma gazela.
A criação intelectual provém da criação carnal, como explicou Rilke. É da mesma essência, é uma repetição enlevada e eterna da volúpia do corpo. Sendo assim, há um clima de paixão e noites de amor no meu quarto.
Exulto de alegria: tenho um teto, um espaço todo meu. Abro a porta com esforço para encontrar brecha no difícil cotidiano. Penetro na clareira do bosque. Vejo uma fonte, no meio do meu quarto.
Na Bíblia aparece uma mulher sem nome, que morava em Suném, por isso era chamada de “sunamita”. Era rica e importante e tinha um coração sensível. Percebeu que Eliseu não era uma pessoa comum, era um profeta, alguém especial sobre quem estava a presença do Espírito Santo. Disse então a seu marido : “_ Eis que tenho observado que este homem que passa sempre por nós é um santo homem de Deus.// Façamos-lhe, pois, um pequeno quarto junto ao muro e ali lhe ponhamos uma cama, e uma mesa, e um candeeiro, e há de ser que, vindo ele a nós, para ali se retirará.” (2 Reis, 4,11-19).
Eliseu se sentiu confortável ao se hospedar naquele quarto exclusivamente preparado para ele. Ali havia o leito para o repouso, a cadeira e a mesa onde o profeta poderia fazer uma refeição frugal, escrever suas cartas e ler mensagens à luz de uma lamparina. E tudo junto a um muro forte, de arrimo e sustento.
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O artista precisa de um quarto, de um lugar trancado a chave, onde possa produzir, libertar a mente para criar sua obra.
Lembrei-me de Van Gogh, o genial pintor impressionista, que em vida experimentou o fracasso e a rejeição. Em 1888 deixou Paris, mudando para o sul da França, onde encontrou um pouco de estabilidade em Arles. Foi ali, quando estava esperando seu amigo, Paul Gauguin, com quem posteriormente se desentendeu, que pintou o quadro “Quarto do Artista em Arles”.
Um quadro tão lindo. Seu próprio ser interior. Um lugar de refúgio. O ventre materno. A janela entreaberta, mas fechada ao mundo exterior por uma densa persiana. A mesa de madeira com vários objetos: jarra de água, copo, escovas. A “cadeira da felicidade”, pintada de amarelo, cor da luz solar. A cama rústica de camponês, onde ele morreu algum tempo depois. A coberta de um vermelho vivo que anima o clima do quadro. As paredes lilases, quase azuis, que fazem contraste com o amarelo. Os retratos acima da cama: um autorretrato, o retrato de uma moça e uma gravura japonesa sobre a cabeceira. Faltou o candeeiro, mas certamente as garrafas serviam de castiçais para velas brancas.
Em carta para Theo, Van Gogh escreveu sobre sua intenção como artista: “_Desta vez é apenas e simplesmente o meu quarto, só aqui a cor deve fazer tudo e, por sua simplificação, dar um estilo mais grandioso às coisas; aqui ela deve sugerir o descanso e o sono. Resumindo, olhar para este quadro deve descansar a mente, ou melhor, a imaginação.”
Recuperado de um colapso nervoso, Van Gogh afirmou: “_Quando vi minhas telas de novo após minha doença, a que me pareceu melhor foi ‘O Quarto’”.
Felizmente, assim como o profeta Eliseu contou com a generosidade da mulher sunamita, Van Gogh teve tintas e um quarto para se abrigar, graças a Theo, seu fiel irmão.
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Virgínia Woolf, a escritora londrina nascida em 1882, dona de personalidade complexa, que alterava momentos de euforia e alegria com outros de profunda depressão, escreveu o romance O Quarto de Jacob. O personagem foi inspirado no seu irmão Jacob Flanders, que morreu muito jovem. Uma personagem que se expressa através do silêncio. Inspirada nesse livro, Vanessa Bell, também irmã de Virgínia, pintou um quadro que nos remete ao aposento de Jacob: o rapaz sentado numa cadeira, sendo observado por uma mulher, estante de livros aos fundos.
Virgínia escreveu ainda um ensaio intitulado “Um teto todo seu”, onde afirma que é necessário para uma mulher escrever ficção, um espaço todo seu, um teto. Ali a mulher escreveria sobre qualquer assunto de forma livre, revelando seu potencial.
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Passava pelo centro de São Paulo, em frente à Faculdade de Direito, quando vi o busto do poeta Álvares de Azevedo. Saudei-o com admiração e compaixão. Um mendigo dormia rente ao pedestal de mármore, pobre homem. Pobre poeta romântico, influenciado por Byron e seu mundo sombrio, apresentou em sua obra as características fundamentais e sofridas do mal-do-século. Seus temas foram a dúvida, o amor, a morte. Embora tenha morrido aos vinte anos e seus versos constituam drama adolescente entre desejos e frustrações, vontades e decepções, escreveu poesia de alto nível. No longo poema “Lira dos Vinte Anos”, de 1853, encontramos primeiramente uma epígrafe de Lamartine: “La chaise où je m’assieds, la natte où je me couche,// La table où je t’écris...” (A cadeira onde me sento, a colcha sob a qual me deito,// A mesa de onde te escrevo...). O poema vai retratando o seu quarto de poeta, o seu leito, como no canto XI: “Junto do leito meus poemas dormem,//- O Dante, a Bíblia, Shakespeare e Byron/ Na mesa confundidos. Junto deles/ Meu velho candeeiro se espreguiça/ E parece pedir a formatura.” A formatura lá na faculdade do centro, pensei. E finaliza no canto XIV: “... Eu me esquecia:/ Faz-se noite: traz fogo e dois charutos,/ E na mesa de estudo/ Acende a lâmpada.”
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O meu é quarto de artista. Nele me trancafio. Sento-me numa cadeira tão firme quanto aquela que o primeiro homem sentou num tronco qualquer da floresta imemorial. À minha frente uma mesa como aquela em que se assentaram os filósofos comensais de O Banquete, de Platão; os discípulos na Santa Ceia ; os cavaleiros do rei Artur, antes de partirem em busca do cálice do Graal. Uma mesa, simples escrivaninha. Sobre ela coloquei um abajur de luz forte, alaranjada, pois gosto de tudo muito claro Alguns livros confundidos, como diria Álvares de Azevedo, que podem ser de Virgílio, os evangelhos, os poetas franceses e brasileiros. Capas e miolos abertos. É nesse quarto que vivo com intensidade aquilo que sou: - uma mente estudiosa e cheia de sede como uma gazela.
A criação intelectual provém da criação carnal, como explicou Rilke. É da mesma essência, é uma repetição enlevada e eterna da volúpia do corpo. Sendo assim, há um clima de paixão e noites de amor no meu quarto.
Exulto de alegria: tenho um teto, um espaço todo meu. Abro a porta com esforço para encontrar brecha no difícil cotidiano. Penetro na clareira do bosque. Vejo uma fonte, no meio do meu quarto.
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