Definição

... da totalidade das coisas e dos seres, do total das coisas e dos seres, do que é objeto de todo o discurso, da totalidade das coisas concretas ou abstratas, sem faltar nenhuma, de todos os atributos e qualidades, de todas as pessoas, de todo mundo, do que é importante, do que é essencial, do que realmente conta...
Em associação com Casa Pyndahýba Editora
Ano VI Número 63 - Março 2014

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Conto - José Geraldo de Barros Martins


Conversas Ambíguas

Naquela noite de sábado calourento Juvenildo Vunegídeo resolveu tomar chope e comer rosbife com salada de batata... para tal, entrou naquele tradicional restaurante alemão que funciona há mais de uma década na capital paulistana... sentou-se em uma das poucas mesas vazias, situada entre um jovem casal e uma família velha...

O nosso protagonista achou curioso que o casal falasse espanhol enquanto a família falava alguma língua que lembrava o alemão...

Pediu um chope e meia porção de canapés sortidos, então enquanto aguardava o garçon trazer o seu pedido, ele abriu o livro que trouxera, no caso um exemplar raro: “Obras-Primas do Conto Alemão” Livraria Editora Martins -1959, uma coletânea de contos teotônicos organizada por Sérgio Millet com textos de Hoffmann, Ztefan Zweig, Heinrich Heine, etc...

Porém não conseguiu prosseguir na leitura, o casal ao lado discutia, e mesmo que a discussão fosse em lingua hispânica, ela desconcentrava o nosso amigo, que incomodado lançada terríveis olhares de censura para a mesa ao lado... ele conseguiu distinguir pelo sotaque, que o jovem era portenho e a jovem paulistana, embora com um espanhol fluente...

Tinham se conhecido na argentina... agora ele veio visitá-la na paulicéia, porém ele esperava algo mais agitado:

- Quiero bailar en lugares de lujo y modernidad!!! No me quedaré em un viejo restaurante alemán...

Mal terminara de pronunciar esta frase o jovem se levantou e saiu apressado... a jovem, no caso uma beldade, ficou impassível, depois olhou para o vizinho de mesa e disse:

- Desculpe-nos por favor, reparei que você estava tentando ler...

- Não tem problema... sei que não é da minha conta, mas por quê que você trouxe o gringo para um lugar como este?

- Como assim??? na minha opinião aqui é um dos melhores lugares de Sâo Paulo, um lugar com história, fundado por um dos tripulantes do navio Windhuk que atracou no Brasil em meio a segunda guerra... todos os tripulantes foram presos, depois quando a guerra acabou eles foram soltos e um deles resolveu abrir um restaurante com o nome do navio...

- Eu conheço essa história, eu sempre venho aqui ...

- Então, voltando ao assunto... eu trouxe este argentino aqui porque aqui é um dos meus lugares favoritos... mas ele não está interessado em lugares como este... se não gostou, que se dane... não ia dar certo mesmo, por sinal, posso sentar na sua mesa?

- Claro... você já pediu?

- Não, mas acho que vou comer rosbife com salada de batata...

- Era justamente o que eu ia pedir...

Depois de vários chopps acompanhados de um delicioso rosbife com salada de batatas, molho tártaro, mostarda escura e molho inglês... eles conversavam sobre o destino da cidade...

- Eu não entendo, todos os dias vemos um monte de apartamentos caríssimos sendo vendidos... não existe dinheiro para tudo isto!!! Não existe tanta gente para estes prédios de luxo... existe alguma coisa errada... - disse ela.

O nosso protagonista olhou-a calmamente, depois se aproximou-se dela e disse baixinho:

- Na verdade, estes apartamentos são comprados por alienígenas, existe uma coisa que ninguém conhece: uma especulação imobiliária interplanetária... (ele na verdade não acreditava muito em nada daquilo, porém repetia aquela teoria pois achava que iria aparentar ser uma pessoa diferenciada e que ela iria achar bacana).

- Não diga... Você consegue reconhecer estes extraterrenses na rua?

- Claro,,, existem vários sinais... mas o principal é o sotaque... como demora muito tempo para falar um português fluente, os alienígenas sempre fingem que são estrangeiros...

- Mas não tem um sintoma mais aparente?

- Tem sim! - disse ele – na verdade os alienígenas babam um líquido azul , mas somente quando são confrontadas com fortes emoções - disse ele copiando a idéia do argumento do filme “Hombre Mirando al Sudeste” de Eliseo Subiela, com plena confiança de que ela jamais teria assistido o filme .

Mudaram logo de assunto para conversas mais interessantes...

Após um ano Juvenildo Vunegídeo estava casado com ela, seu nome: Jamélia Dorotilda, uma mulher interessantísssima.... uma tarde ao voltar do trabalho ele encontrou sua mulher em êxtase: em suas mãos um exame de gravidez positivo... eles comemoraram a notícia indo ao mesmo restaurante alemão, e por uma incrível coincidência aquela familia de estrangeiros que se sentara ao lado deles na noite do primeiro encontro, aquela mesma família que falava alguma língua que lembrava o alemão, estava mais uma vez sentada na mesa ao lado... No jantar tudo ocorreu muito bem , como sempre, porém após retornar ao lar, no meio da noite, quando o nosso protagonista se levantou com pressa para ir ao banheiro, ele observou um filete de saliva azul a escorrer da boca dela e a cair sobre o travesseiro...

Não conseguiu dormir: duvidara se havia se casado com uma alienígena ou com uma gozadora... ponderou sobre as duas situações:

No primeiro caso o que mais o angustiava era a idéia de que o seu futuro filho ou filha, iria ter uma mãe de outro planeta, e que esta criança poderia ser discriminada na escola... pensou também que sempre achara que ela tinha alguma coisa de estranho, vai ver era isso...

No segundo caso, isto é de ela ter se lembrado daquela estória da baba azul e ter comprado uma pastilha de anilina para simular que era de outro planeta, o que mais o surpreendia era a descoberta de que sua esposa era bastante espirituosa, pensou também que sempre achara que ela era uma grande gozadora, vai ver era isso...

Porém quando na manhã seguinte ele avistou aquela família de estrangeiros que estava no restaurante alemão na noite anterior... ele viu que os membros daquela família eram moradores de um apartamento de luxo recém construído (destes que o condomínio é uma fortuna) .. então, somente então ele compreendeu a resposta para a dúvida que tanto o angustiara quanto o surpreendera na noite anterior...

Conto - Cesar Cruz

Noir, by Paper-pulp - Digital Art / Paintings & Airbrushing

A Cliente

Eu entrando no banco, tocou meu celular. Recuei da porta giratória e atendi. Era a Suely.

– Diga, minha delícia – falei

– O Azevedo tem cliente pra você atender, amanhã à noite.

– Opa, comigo mesmo – eu disse – Quem, onde e como? – perguntei, as perguntas básicas.

– Vou te passar no email. Agora estou usando um do Hotmail, chegará como Clotilde, okay? Não esquece de depois apagar tudo, inclusive a lixeira.

– Pode deixar, minha deusa, tudo cem por cento seguro. E por falar nisso, quando vamos deixar de tanta segurança e marcar um jantarzinho pra gente se conhecer? – mandei, cheio de charme, mas ela já tinha desligado.

Saí do banco depois de conferir o saldo no negativo. Aquele cliente veio em boa hora. Eu não tinha tido um puto nem pra comprar um presente pra minha filha. Tava quase assinando atestado de pobreza. Dois dias antes fui na casa da mãe dela só pra dar um beijinho de parabéns, de mão abanando. Ela me cobrou uma boneca que tinha sei lá que cabelo, e eu só dizendo papai traz depois, meu bem, papai traz.

Rodei as imediações atrás de uma lan house. Entrei em uma imunda e escura, que achei na São Bento. Enquanto baixava o email da Suely, sentia as pulgas subirem por dentro das pernas das minhas calças. Copiei as informações no papel interno do maço de cigarros e vazei.

No caminho pra casa fui lendo com calma as instruções. O cliente era mulher. E jovem. Porra, já falei pro Azevedo que meu negócio é homem! Que com mulher eu tenho dificuldade, periga eu nem conseguir, mas não adianta falar, ele só ouve o que quer. Vira e mexe põe uma dona na minha fita. Mas tenho que encarar, ganha-pão é ganha-pão.

Vinte e cinco anos, alta e magra, muito bonita. Namorada de um comerciante de cinquenta e oito, ciumento. Só com essas informações já dava para sacar tudo, inclusive o motivo da minha contratação.

O Azevedo no pagar é firme que nem bicheiro. Na manhã seguinte a minha comissão já estava na conta, adiantada. Uma grana gorda do caralho. Deve ter sido bom o montante do negócio.

De tarde passei no shopping e comprei uma camisa nova. Gosto de estrear uma pecinha virgem a cada novo cliente. Às vezes cueca, às vezes camisa. É uma tradição que tenho, pra dar sorte. Comprei também uma boneca bacana pra minha pequena, louco pra ver o sorriso dela.

Às dez da noite eu já estava na esquina, distante uns cem metros, olhando com o binóculos a fachada da academia. Academia de bacana. Só viatura lustrosa saindo do estacionamento. Segundo as informações, ela ia embora a pé, morava perto. O coroa bancava legal a mina, tava evidente. Só um esquema daquele devia custar uns quatrocentos mangos por mês. E eu já tinha fumado meio maço e nada dela sair de lá.

Dali a pouco lá veio ela. Nem acreditei quando vi. Uma coisa linda. Um narizinho de anjo. Cintura fina, o corpo sólido e musculoso metido numas roupas coladas de ginástica, o cabelo negro, pesado, preso em um rabo-de-cavalo balançando pra lá e prá cá enquanto ela andava.

Quando ela virou a esquina na rua estreita, à direita, só de casas antigas, liguei o carro, saí do meu posto de observação e me aproximei, juntando ao lado dela no meio-fio. Baixei um pouco o vidro. Queria ver de perto. Ela olhou pros meus olhos com uns olhos redondos e pretos que quase fraquejei. Se assustou e apertou o passo, se afastando acelerada com aquele rebolado maravilhoso.

Desliguei o motor. Baixei de vez o vidro e espiei pelos retrovisores. Ninguém pra lado nenhum. Ela já tava a uns 50 metros quando apoiei a pistola entre a porta e o retrovisor, já com o silenciador acoplado. Mirei no nó do rabo-de-cavalo e disparei.

Ela caiu de frente sem fazer nem um ruído, de cara no chão. Ficou ali, emborcada. Imóvel. Na rua principal atrás de mim, um ônibus passou barulhento, depois o silêncio voltou a reinar.

Liguei o motor e saí de ré, apagado; peguei a avenida principal e acelerei, decidido a dizer pro porra do Azevedo que mulher, ainda mais bonita assim, eu não atendo nunca mais. Por dinheiro nenhum!

Conto - José Miranda Filho

Rubella Boats at Porto - Sheryn Johnson

Encontro de Amigos - Parte 2

Porto foi o marco inicial. A temperatura estava agradável. O céu azul e ensolarado. Aterrissamos no Aeroporto de ….pontualmente às 11:40 confirmando a máxima pontualidade dos europeus. Pegamos o carro e nos dirigimos ao hotel apenas para deixar as bagagens. Seguimos diretamente para Vila Nova de Gaia, terra de meus ancestrais.

Atravessamos a ponte Don Luiz I que separa Nova Gaia da Cidade do Porto e nos dirigimos ao outro lado do rio, onde resolvemos caminhar pela margem esquerda à procura de um restaurante para fazermos a primeira refeição do dia. A sombra das casas no entorno do rio D`Ouro refletiam-se pela luz forte do sol daquela tarde em suas águas mansas e cristalinas.

Às margens do Rio D’Ouro há inúmeros bares e restaurantes de boa qualidade.

Andamos a pé por um bom tempo à margem do rio, onde ancorados em fila indiana, permaneciam pequenos barcos carregados de tonéis de vinho, prontos para serem transportados para outras regiões do País e para o exterior. Almoçamos num restaurante bem próximo ao cais. Muito bom, por sinal. Depois do almoço fomos visitar algumas adegas de vinho que ficam nas proximidades, ali mesmo em Nova Gaia. São várias marcas. Cada uma melhor do que a outra. Não dá para provar todas. Apenas degustamos um pouco de duas ou três qualidades.

Retornamos ao hotel às 16 horas para refazer as energias, tomar um banho, descansar e partir para a segunda etapa do passeio. O tempo escasso não permitia que parássemos ao menos alguns minutos.

À tardezinha, voltamos a percorrer as ruas de Porto, visitando alguns monumentos da cidade, aproveitando o tempo que nos restava. Estivemos na Catedral do Porto, vistosa e majestosa edificação sobre a colina Penaventosa; a Igreja da Sé, originalmente uma fortaleza; a Igreja de Santa Clara; o Palácio da Bolsa; a Igreja de São Francisco, construída no século XIV; a Igreja do Carmo etc. Vale ressaltar ainda o bairro da Ribeira, fascinante, com suas ruelas estreitas e curvosas e típicas casas do século passado, que lhe dão a beleza escultural dos dias atuais, seus bares, restaurantes e casas noturnas que proliferam no local. É simplesmente fantástico!

Prosseguimos a caminhada pelas areias brancas e macias da praia de Matosinhos, com o sol já quase se pondo - uma belíssima praia, banhada pelo Atlântico luso, e onde se encontram o Palácio do Queijo e o Forte de São Francisco.

Andamos a tarde inteira pelas vilas e ruelas de Porto. Seguimos o roteiro através de um mapa da cidade que se encontra nos hotéis à disposição dos hóspedes. Estávamos bem localizados. A circunvalação, espécie de rodoanel que circunda a cidade, facilita o tráfego de veículos que demandam ao centro ou a bairros vizinhos. O trânsito de Porto é simples e descomplicado, diferente da maioria das cidades brasileiras. Flui bem Os motoristas são educados e respeitam o pedestre, não obstante, se desrespeitarem entre si. Às vezes há xingamentos e e bate-boca.

A noite voltamos à Vila Nova de Gaia. Nesta hora eram as luzes das ruas e o luar brilhante que iluminavam as margens do rio. Jantamos no entorno do cais do rio D’ Ouro em outro restaurante, tão bom quanto o primeiro.

Retornamos ao hotel quase duas horas da manhã, cansados, mas satisfeitos, particularmente eu pela realização de um sonho há muito desejado e que finalmente se concretizava, e que certamente ficará gravado por muito tempo em minha memória.

Do Porto, na manhã seguinte trafegando pela auto-estrada A-29, seguimos para Oliveira de Alzemei, passando ao lado de Santa Maria de Feiras, antes de alcançarmos Lisboa.

De Santa Maria de Feiras, partimos para Aveiro e depois pegamos a estrada A-1 até Coimbra que fica às margens do rio Mondego, formada por antiga povoação do D’Ouro. Permanecemos em Coimbra por algumas horas, com tempo suficiente para visitarmos a famosa Universidade cantada em prosa e verso, e consagrada por uma canção interpretada por Amália Rodrigues, brilhante fadista portuguêsa conhecida no mundo inteiro. A escola mais antiga de Portugal, a Universidade de Coimbra, fundada em 1308 por Don Dinis, primeiramente em Lisboa, e posteriormente retornada a Coimbra em 1337, está localizada numa montanha, cujo acesso também se dá por uma ampla escadaria de aproximadamente 75 degraus. Sua subida é cansativa. A escola de Coimbra sofreu grandes transformações durante os governos de Don João III (1537) e Marquês de Pombal (século XVIII), Primeiro Ministro e homem forte de Portugal. Pombal também era Maçon tradicional, com domínio sobre as lojas de Lisboa, Áustria e Alemanha. Foi ele, homem poderoso e maçom influente, que através de seu poder conseguiu nomear o Papa Clemente III, com o único objetivo de exterminar definitivamente a Companhia de Jesus que lhe tirava o sono e exercia amplo domínio sobre as terras de Brasil e Portugal.

Fizemos um ligeiro tour pelo campus da universidade, visitando alguns monumentos ao entorno das escadarias que dão acesso ao centro do campus. O Campanário, eterno símbolo da faculdade, datado de 1537; a Biblioteca e seu magnífico acervo composto de mais de 300 mil volumes, presente do Rei D. João VI; a Capela de São Miguel; o Museu Nacional e outros tantos símbolos históricos, como o edifício da Sé Velha de Coimbra, reconstruído pelo Bispo Don Miguel Salomão, iniciada em 1162 e terminada em 1184; o Claustro, excepcional obra do século XII, de estilo gótico e patrocinado pelo rei Don Afonso II; a Capela do Santíssimo Sacramento; de São Pedro e muitas outroa monumentos seculares.

Partimos de Coimbra para Leiria e paramos uma hora exata em Fátima, cidade sagrada, sede do Santuário de Nossa Senhora. Fizemos-lhe uma prece agradecendo por todos os acontecimentos de nossa vida. Refizemos nossas energias físicas e espirituais, orando nos túmulos dos irmãos pastores, Francisco, Lucia e Jacinta, que em 1917 declararam ter sido testemunhas das aparições da Santa e outros fenômenos, à beira de uma videira verde e frondosa lá existente até hoje circundada por uma cerca de madeira para protegê-la da ação de vândalos. Entramos no Santuário da Virgem e nos ajoelhamos diante de sua imagem. Adquirimos algumas lembranças, pequenos objetos religiosos nas barraquinhas espalhadas pelo local e seguimos nossa viagem rumo a Lisboa. Vale a pena ressaltar em Fátima o Museu de Cera, que visitamos rapidamente,na Rua Jacinto Marto, onde estão expostas figuras que nos ajudam a entender a razão porque milhões de peregrinos se dirigem à Fátima todos os anos.

A noite se aproximava lentamente tomando o lugar do sol pungente e forte que nos acompanhou durante a tarde inteira e iluminou boa parte de nossa viagem. Saímos de Fátima e passamos por Torres Novas, de onde seguimos até Santarém, cidade às margens do rio Tejo, onde, na Igreja das Graças, repousam os restos mortais de Pedro Álvares Cabral. De Santarém alcançamos a estrada A-15, bem conservada e larga, passando por Rio Maior, Óbidos e Torres Vedras, até alcançarmos Lisboa, nosso destino final.

As luzes de Lisboa eram visíveis à distância, à medida que nos aproximávamos da cidade. Somente a escuridão da noite sem luar faz as estrelas brilharem incessantes.

Chegamos ao hotel.

Desfizemos as malas, tomamos banho, bebemos vinho e fomos jantar.

Ficamos conversando no restaurante até o encerramento – como se diz em Portugal - por volta de 1 hora da manhã, quando nos recolhemos.

Conto – Raquel Naveira

First version of "Bedroom in Arles", 1888 - Van Gogh

Quarto De Artista

Na Bíblia aparece uma mulher sem nome, que morava em Suném, por isso era chamada de “sunamita”. Era rica e importante e tinha um coração sensível. Percebeu que Eliseu não era uma pessoa comum, era um profeta, alguém especial sobre quem estava a presença do Espírito Santo. Disse então a seu marido : “_ Eis que tenho observado que este homem que passa sempre por nós é um santo homem de Deus.// Façamos-lhe, pois, um pequeno quarto junto ao muro e ali lhe ponhamos uma cama, e uma mesa, e um candeeiro, e há de ser que, vindo ele a nós, para ali se retirará.” (2 Reis, 4,11-19).

Eliseu se sentiu confortável ao se hospedar naquele quarto exclusivamente preparado para ele. Ali havia o leito para o repouso, a cadeira e a mesa onde o profeta poderia fazer uma refeição frugal, escrever suas cartas e ler mensagens à luz de uma lamparina. E tudo junto a um muro forte, de arrimo e sustento.

*

O artista precisa de um quarto, de um lugar trancado a chave, onde possa produzir, libertar a mente para criar sua obra.

Lembrei-me de Van Gogh, o genial pintor impressionista, que em vida experimentou o fracasso e a rejeição. Em 1888 deixou Paris, mudando para o sul da França, onde encontrou um pouco de estabilidade em Arles. Foi ali, quando estava esperando seu amigo, Paul Gauguin, com quem posteriormente se desentendeu, que pintou o quadro “Quarto do Artista em Arles”.

Um quadro tão lindo. Seu próprio ser interior. Um lugar de refúgio. O ventre materno. A janela entreaberta, mas fechada ao mundo exterior por uma densa persiana. A mesa de madeira com vários objetos: jarra de água, copo, escovas. A “cadeira da felicidade”, pintada de amarelo, cor da luz solar. A cama rústica de camponês, onde ele morreu algum tempo depois. A coberta de um vermelho vivo que anima o clima do quadro. As paredes lilases, quase azuis, que fazem contraste com o amarelo. Os retratos acima da cama: um autorretrato, o retrato de uma moça e uma gravura japonesa sobre a cabeceira. Faltou o candeeiro, mas certamente as garrafas serviam de castiçais para velas brancas.

Em carta para Theo, Van Gogh escreveu sobre sua intenção como artista: “_Desta vez é apenas e simplesmente o meu quarto, só aqui a cor deve fazer tudo e, por sua simplificação, dar um estilo mais grandioso às coisas; aqui ela deve sugerir o descanso e o sono. Resumindo, olhar para este quadro deve descansar a mente, ou melhor, a imaginação.”

Recuperado de um colapso nervoso, Van Gogh afirmou: “_Quando vi minhas telas de novo após minha doença, a que me pareceu melhor foi ‘O Quarto’”.

Felizmente, assim como o profeta Eliseu contou com a generosidade da mulher sunamita, Van Gogh teve tintas e um quarto para se abrigar, graças a Theo, seu fiel irmão.

*

Virgínia Woolf, a escritora londrina nascida em 1882, dona de personalidade complexa, que alterava momentos de euforia e alegria com outros de profunda depressão, escreveu o romance O Quarto de Jacob. O personagem foi inspirado no seu irmão Jacob Flanders, que morreu muito jovem. Uma personagem que se expressa através do silêncio. Inspirada nesse livro, Vanessa Bell, também irmã de Virgínia, pintou um quadro que nos remete ao aposento de Jacob: o rapaz sentado numa cadeira, sendo observado por uma mulher, estante de livros aos fundos.

Virgínia escreveu ainda um ensaio intitulado “Um teto todo seu”, onde afirma que é necessário para uma mulher escrever ficção, um espaço todo seu, um teto. Ali a mulher escreveria sobre qualquer assunto de forma livre, revelando seu potencial.

*

Passava pelo centro de São Paulo, em frente à Faculdade de Direito, quando vi o busto do poeta Álvares de Azevedo. Saudei-o com admiração e compaixão. Um mendigo dormia rente ao pedestal de mármore, pobre homem. Pobre poeta romântico, influenciado por Byron e seu mundo sombrio, apresentou em sua obra as características fundamentais e sofridas do mal-do-século. Seus temas foram a dúvida, o amor, a morte. Embora tenha morrido aos vinte anos e seus versos constituam drama adolescente entre desejos e frustrações, vontades e decepções, escreveu poesia de alto nível. No longo poema “Lira dos Vinte Anos”, de 1853, encontramos primeiramente uma epígrafe de Lamartine: “La chaise où je m’assieds, la natte où je me couche,// La table où je t’écris...” (A cadeira onde me sento, a colcha sob a qual me deito,// A mesa de onde te escrevo...). O poema vai retratando o seu quarto de poeta, o seu leito, como no canto XI: “Junto do leito meus poemas dormem,//- O Dante, a Bíblia, Shakespeare e Byron/ Na mesa confundidos. Junto deles/ Meu velho candeeiro se espreguiça/ E parece pedir a formatura.” A formatura lá na faculdade do centro, pensei. E finaliza no canto XIV: “... Eu me esquecia:/ Faz-se noite: traz fogo e dois charutos,/ E na mesa de estudo/ Acende a lâmpada.”

*

O meu é quarto de artista. Nele me trancafio. Sento-me numa cadeira tão firme quanto aquela que o primeiro homem sentou num tronco qualquer da floresta imemorial. À minha frente uma mesa como aquela em que se assentaram os filósofos comensais de O Banquete, de Platão; os discípulos na Santa Ceia ; os cavaleiros do rei Artur, antes de partirem em busca do cálice do Graal. Uma mesa, simples escrivaninha. Sobre ela coloquei um abajur de luz forte, alaranjada, pois gosto de tudo muito claro Alguns livros confundidos, como diria Álvares de Azevedo, que podem ser de Virgílio, os evangelhos, os poetas franceses e brasileiros. Capas e miolos abertos. É nesse quarto que vivo com intensidade aquilo que sou: - uma mente estudiosa e cheia de sede como uma gazela.

A criação intelectual provém da criação carnal, como explicou Rilke. É da mesma essência, é uma repetição enlevada e eterna da volúpia do corpo. Sendo assim, há um clima de paixão e noites de amor no meu quarto.

Exulto de alegria: tenho um teto, um espaço todo meu. Abro a porta com esforço para encontrar brecha no difícil cotidiano. Penetro na clareira do bosque. Vejo uma fonte, no meio do meu quarto.

Autores

Ademir Demarchi Adriana Pessolato Adília Lopes Afobório Agustín Ubeda Alan Kenny Alberto Bresciani Alberto da Cunha Melo Aldo Votto Alejandra Pizarnik Alessandro Miranda Alexei Bueno Alexis Pomerantzeff Ali Ahmad Said Asbar Almandrade Alyssa Monks Amadeu Ferreira Ana Cristina Cesar Ana Paula Guimarães Andrew Simpson Anthony Thwaite Antonio Brasileiro Antonio Cisneros Antonio Gamoneda Antonio Romane António Nobre Ari Candido Fernandes Ari Cândido Aristides Klafke Arnaldo Xavier Atsuro Riley Aurélio de Oliveira Banksy Bertolt Brecht Bo Mathorne Bob Dylan Bruno Tolentino Calabrone Camila Alencar Carey Clarke Carla Andrade Carlos Barbosa Carlos Bonfá Carlos Drummond de Andrade Carlos Eugênio Junqueira Ayres Carlos Pena Filho Carol Ann Duffy Carolyn Crawford Cassiano Ricardo Cecília Meireles Celso de Alencar Cesar Cruz Charles Bukowski Chico Buarque de Hollanda Chico Buarque de Hollanda and Paulo Pontes Claudia Roquette-Pinto Constantine Cavafy Conteúdos Cornelius Eady Cruz e Souza Cyro de Mattos Cândido Rolim Dantas Mota David Butler Denise Freitas Desmond O’Grady Dimitris Lyacos Dino Valls Dom e Ravel Donald Teskey Donizete Galvão Donna Acheson-Juillet Dorival Fontana Dylan Thomas Décio Pignatari Edgar Allan Poe Edson Bueno de Camargo Eduardo Miranda Eduardo Sarno Eduvier Fuentes Fernández Elaine Garvey Elizabeth Bishop Enio Squeff Ernest Descals Eugénio de Andrade Evgen Bavcar Fernando Pessoa Fernando Portela Ferreira Gullar Firmino Rocha Francisco Niebro George Callaghan George Garrett Gey Espinheira Gherashim Luca Gil Scott-Heron Gilberto Nable Glauco Vilas Boas Gonçalves Dias Grant Wood Gregório de Matos Guilherme de Almeida Hamilton Faria Henri Matisse Henrique Augusto Chaudon Henry Vaughan Hilda Hilst Hughie O'Donoghue Husam Rabahia Ian Iqbal Rashid Ingeborg Bachmann Issa Touma Italo Ramos Itamar Assumpção Iulian Boldea Ivan Donn Carswell Ivan Justen Santana Ivan Titor Ivana Arruda Leite Izacyl Guimarães Ferreira Jacek Yerka Jack Butler Yeats Jackson Pollock Jacob Pinheiro Goldberg Jacques Roumain James Joyce James Merril James Wright Jan Nepomuk Neruda Jason Yarmosky Jeanette Rozsas Jim McDonald Joan Maragall i Gorina Joaquim Cardozo Joe Fenton John Doherty John Steuart Curry John Updike John Yeats Josep Daústin José Carlos de Souza José Geraldo de Barros Martins José Inácio Vieira de Melo José Miranda Filho José Paulo Paes José Ricardo Nunes José Saramago José de Almada-Negreiros João Cabral de Melo Neto João Guimarães Rosa João Werner Junqueira Ayres Kerry Shawn Keys Konstanty Ildefons Galczynski Kurt Weill Leonardo André Elwing Goldberg Lluís Llach I Grande Lou Reed Luis Serguilha Luiz Otávio Oliani Luiz Roberto Guedes Luther Lebtag Léon Laleau Lêdo Ivo Magnhild Opdol Manoel de Barros Marco Rheis Marcos Rey Mari Khnkoyan Maria do Rosário Pedreira Marina Abramović Marina Alexiou Mario Benedetti Mario Quintana Mariângela de Almeida Marly Agostini Franzin Marta Penter Marçal Aquino Masaoka Shiki Maser Matilde Damele Matthias Johannessen Michael Palmer Miguel Torga Mira Schendel Moacir Amâncio Mr. Mead Murilo Carvalho Murilo Mendes Márcio-André Mário Chamie Mário Faustino Mário de Andrade Mário de Sá-Carneiro Nadir Afonso Nuala Ní Chonchuír Nuala Ní Dhomhnaill Nâzım Hikmet Odd Nerdrum Orides Fontela Orlando Gibbons Orlando Teruz Oscar Niemeyer Osip Mandelstam Oswald de Andrade Pablo Neruda Pablo Picasso Patativa do Assaré Paul Funge Paul Henry Paulo Afonso da Silva Pinto Paulo Cancela de Abreu Paulo Henriques Britto Paulo Leminski Pedro Du Bois Pedro Lemebel Pete Doherty Petya Stoykova Dubarova Pink Floyd Plínio de Aguiar Pádraig Mac Piarais Qi Baishi Rafael Mantovani Ragnar Lagerbald Raquel Naveira Raul Bopp Regina Alonso Renato Borgomoni Renato Rezende Renato de Almeida Martins Ricardo Portugal Ricardo Primo Portugal Ronald Augusto Roniwalter Jatobá Rowena Dring Rui Carvalho Homem Rui Lage Ruy Belo Ruy Espinheira Filho Ruzbihan al-Shirazi Régis Bonvicino Salvado Dalí Sandra Ciccone Ginez Santiago de Novais Saúl Dias Scott Scheidly Seamus Heaney Sebastian Guerrini Sebastià Alzamora Shahram Karimi Shorsha Sullivan Sigitas Parulskis Silvio Fiorani Smokey Robinson Sohrab Sepehri Sophia de Mello Breyner Andresen Souzalopes Susana Thénon Susie Hervatin Suzana Cano Sílvio Ferreira Leite Sílvio Fiorani The Yes Men Thom Gunn Tim Burton Tomasz Bagiński Torquato Neto Túlia Lopes Vagner Barbosa Val Byrne Valdomiro Santana Vera Lúcia de Oliveira Vicente Werner y Sanchez Victor Giudice Vieira da Silva Vinícius de Moraes W. B. Yeats W.H. Auden Walt Disney Walter Frederick Osborne William Kentridge Willian Blake Wladimir Augusto Yves Bonnefoy Zdzisław Beksiński Zé Rodrix Álvaro de Campos Éle Semog