Matt Sesow - "Boy with Goat" 30" x 39" oil on chipboard |
Caos Tranquilo
Angra dos Reis, com a Baia da Ilha Grande à sua frente, possui 365 pequenas ilhas (a maioria é deserta) e mais de 2.000 praias, segundo informa a propaganda da Secretaria de Turismo. Lindo, não? Sim, mas, a cidade de Angra, o seu perímetro urbano, ainda me lembra o Jorge Luiz Borges: “Não existem outros paraísos, além dos paraísos perdidos”, ele disse. Quanto a essa afirmação, eu digo apenas que “Pode ser”. E ao concordar - em parte - com o argentino, eu acabo aceitando a periferia de Angra, um mundo diferente, agora minha residência, onde se vive a experiência de uma paz aparente, uma espécie de apatia, a indolência que esconde um caos tranquilo, onde quase tudo o que se vê não é bem como deveria ser, é sempre insuficiente, e os serviços são da pior qualidade - como, de resto, em qualquer outra roça. Não obstante, pra mim, tudo bem; duvido que eu encontre lugar melhor. Depois de vinte anos morando em São Paulo, também me conjugo com o Mário Lago e já me contento com nada além de uma linda ilusão. Mas olha: da cidade, eu não gosto.
Não gosto porque ela se pretende colonial, mas aparece como um lugarejo ordinário e sem caráter. Nela, cada casa, cada prédio se apresenta com um estilo diferente, lastimável, tresandando cheiro acre e gosto duvidoso, e é assim que o autêntico sempre assume uma cara de velho e o moderno é modernoso. Isto é, no mínimo, lamentável, porque a enseada de Angra foi visitada pela primeira vez em 1502, só dois anos depois da descoberta oficial do país, e a cidade já foi um modelo histórico, mas se entregou aos seus prefeitos e se deixou violentar por eles. Desse modo, em Angra, nada é como parece ser, ou deveria ser. Lá, não há capricho. Nenhum trabalho ou serviço merece atenção, esmero, bom acabamento, porque tudo é feito às pressas e termina malfeito, não obstante seja dado como resolvido - malresolvido, é claro. É assim até com as mulheres, principalmente as jovens. As mocinhas se apresentam vestidas com a última moda, cópias de modelos do Rio, Nova York ou Londres. Então, em quase tudo elas se assemelham à Garota de Ipanema, mas quando falam e dizem o que pensam, logo se percebe que elas são garotas de Angra. E eu também temo que os seus habitantes - uma gente tumultuada, que se junta aos milhares, sempre apressada, correndo de um lado para o outro, como se fossem formigas, o que é inexplicável num lugar onde nada é urgente - igualmente pequem pela falta de identidade. Não porque sejam diferentes entre eles, como as caras da cidade, o que é natural, já que são indivíduos, mas porque a natureza daquelas pessoas pode ter sido contaminada pela ambiguidade arquitetônica. Quem sabe? Por tudo isso, eu acho mesmo que ela, a cidade, mereceu ter sido excomungada por um Papa, lá pelos idos de 1800, porque um padre foi assassinado no adro de uma igreja, quando um marido surpreendeu a mulher em adultério com ele (o que não consta da sua envergonhada história oficial).
Pode ser que essa minha suspeita seja tão extravagante quanto o lugar, mas que aquela população é esquisita, ah, isso é. Há coisas que só poderiam acontecer lá. Um bom exemplo foi o caso do bode descoberto dentro de um ônibus, denunciado por uma costureira enojada pelo fato de ele estar lambendo o seu calcanhar. É bem possível que aquele pé não estivesse muito limpo e, portanto, salgado - uma delícia para o bode. Da minha parte, eu não gostei nada de ter sido levado a uma delegacia da polícia, envolvido numa discussão que durou várias horas, pra servir de testemunha contra um bode. Eu me senti humilhado. Foi lá que eu conheci de perto o dono do animal, um homem cuja fama a ele atribuída é a de melhor cozinheiro de buchadas do país. O bicho estava destinado a ser o almoço de um casamento para o qual ele, o dono, havia sido contratado. E também soube que a costureira, se dirigia para a mesma casa, num distrito nas proximidades de Paraty, e também já estava atrasada para a entrega do vestido da noiva, coincidência que, no fim dessa história, fez dela, a denunciante, uma companheira do dono e do bode, as vítimas, por força da conveniência de dividir a tarifa de um mesmo táxi. Mas ele, o dono, se manteve firme o tempo todo, recusando-se a pagar a passagem do bode, no que o trocador e o motorista tanto insistiam, enquanto ele não tinha um só tostão no bolso.
Em geral, eu exagero um pouco, confesso. Mas, a partir daí, desenrolou-se o seguinte drama, que eu vou tentar reproduzir com honestidade:
“Não me interessa se vocês dois estão atrasados”, sentenciou o motorista, depois de estacionar o ônibus no acostamento. “Por mim, ou ele paga a passagem do bode ou essa noiva vai se casar nua e com fome.”
Mais revoltada ainda, a denunciante investiu contra o trocador:
“Cabe a você tomar uma providência. Como é que esse bode entrou aqui?”
“Não, minha senhora”, observou, calmo, o trocador, “ele não ‘entrou’, porque um bode não vai deixar o pasto e preferir viajar de ônibus. Alguém o introduziu aqui.”
“Eu sei quem foi”, falou um outro passageiro.
Nesse ponto, em que uma nova denúncia estava pronta pra ser feita, um menino levantou a voz pra avisar:
“Olha, gente: o bode fez cocô.”
A revolta generalizou-se entre os cerca de 30 passageiros, e foi só então que o dono do bode se manifestou:
“Calma, pessoal,” disse ele, “esse não é um cocô comum.”
“Ah, sim”, segredou ao meu ouvido uma senhora sentada ao meu lado, “agora também existe um cocô especial, não é?”
“Tenham calma”, ele continuou, “porque um bode, pra dar uma boa buchada, precisa ficar quinze dias comendo apenas milho. Então, ele não é como certas pessoas, que sempre têm a boca suja pronta pra fazer denúncias.”
“Alto lá!,“ a costureira devolveu, “eu sou uma profissional de respeito. E bem aqui, neste ônibus, tem alguém que pode falar em meu favor.”
A minha surpresa foi grande, quando eu a vi apontando o dedo pra mim! Foi só depois de alguns segundos que eu reconheci a dona Maria, uma costureira de cujos serviços eu já tinha me servido - aliás, de péssima qualidade.
O que aconteceu não é o que o senso comum pode esperar, porque não foi a presença do bode, mas, sim, a tentativa de calote o motivo de irmos todos para a delegacia, onde a minha boca se abriu de espanto, quando um investigador, travestido de delegado, mandou o bode e o seu dono para a mesma cela. E só revogou essa decisão quando eu resolvi pagar a tal passagem.
Eu estava no ônibus, tentando chegar no FLIP de Paraty, assim como também a Lucy, outra conhecida minha, ex-cozinheira e, agora, mecânica de automóveis. Ela mesma, a Lucy, não destoa naquela comunidade, e serve como exemplo da “originalidade” dos angrenses. Não por causa da sua nova profissão, rara entre as mulheres mas que ela desempenha com maestria (ela cuida do meu carro), mas porque comprou uma rua. Isso mesmo, ela comprou a rua onde mora. Eu não sabia - e disse isso a ela - que uma prefeitura podia vender uma rua. Mas a de Angra vendeu, e eu vi a escritura. Mais ainda: uma rua com a triste fama de ser mal-assombrada, onde mesmo os empregados da companhia de eletricidade do município se recusam a entrar até pra trocar as lâmpadas dos postes, quando queimam. Talvez tenha sido vendida por isso mesmo: era desvalorizada; ninguém queria morar nela.
Enfim, eu não gosto de Angra porque identifico nela esse excesso de excentricidades. Ah!, assim também já é demais.
Engana-se quem acredita na placidez da roça. Eu costumo brincar, dizendo que, “Nesta região, as novidades são todas antigas”. Mentira! É verdade que elas não nos chegam pelos jornais, até porque eles são desnecessários, numa vizinhança que não é afetada, nem pela indecisa política monetária do País, nem pelas decisões restritivas da União Européia. Afinal, pra quê importar singularidades, se a produção local é tão fértil? Pode ser que a população dos arredores de Angra não participe da civilização atual, mas... e daí? Não me consta que o mundo venha dando bons exemplos a serem seguidos por uma gente que tem lá as suas crises, sim (as quais não provêm de hipotecas gananciosas), mas não mata nem rouba, e até só mente por brincadeira.
É verdade que eu sou um observador compulsivo; não nego. Mas ninguém vai agora me acusar de xeretar a vida dos habitantes de Angra, porque os fatos que lá ocorrem, em geral, caem no meu colo. Foi isso o que aconteceu outro dia, quando eu me sentei num banco da praça principal. Alguém que me observasse de volta, talvez pudesse pensar: “Lá vem ele, meter o nariz nas intimidades da cidade.” Mas não foi assim, não. Mal eu me sentei e a vendedora de bijuterias saiu da barraca pra me pedir um cigarro. Com os seus cerca de 30 anos, desatou a me contar um passado de garota rebelde, confidenciando que fugiu de casa aos 15 anos, pra viver sem dinheiro, com o namorado, na Ilha Grande, num romance que durou apenas um mês. Confessou que, com ele, aprendeu a fumar maconha e a fazer bijuterias. "Hoje", esclareceu, "vivo disso." Tanta franqueza me incomodou um pouco, mas escondia um segredo.
Pra mim, aquela história nada tinha de original ou atraente. Eu estava preferindo a minha observação do formigueiro. Mas ela parecia estar revivendo, tão empolgada que, por duas vezes, eu tive de alertá-la para as possíveis freguezas que paravam junto da barraca e, em não sendo atendidas, prestavam atenção à conversa. Em pouco tempo ela reuniu quatro ouvintes, me esqueceu totalmente, passou a falar pra audiência, e, no fim, não vendeu nada. A impressão que eu tive é que, mesmo pra ela, as bijuterias eram secundárias. E eu estava certo. Bastou eu prestar mais atenção pra perceber uma frequência incomum na sua barraca. Ué?, o que querem todos esses jovens, rapazes? Estariam interessados em brincos e colares? Ora!, é claro que não. E eu descobri a verdade: ela vive mesmo é da outra coisa que aprendeu com o namorado.
Foi só aí que o Borges errou. A periferia de Angra é uma exceção à sua regra: ela existe. Pode ser que esteja perdida numa região inteira que é um deserto em termos de cultura clássica. Mas pra quem consegue observá-la de perto, ela se exibe com o seu farto e paradisíaco folclore.
Angra dos Reis, com a Baia da Ilha Grande à sua frente, possui 365 pequenas ilhas (a maioria é deserta) e mais de 2.000 praias, segundo informa a propaganda da Secretaria de Turismo. Lindo, não? Sim, mas, a cidade de Angra, o seu perímetro urbano, ainda me lembra o Jorge Luiz Borges: “Não existem outros paraísos, além dos paraísos perdidos”, ele disse. Quanto a essa afirmação, eu digo apenas que “Pode ser”. E ao concordar - em parte - com o argentino, eu acabo aceitando a periferia de Angra, um mundo diferente, agora minha residência, onde se vive a experiência de uma paz aparente, uma espécie de apatia, a indolência que esconde um caos tranquilo, onde quase tudo o que se vê não é bem como deveria ser, é sempre insuficiente, e os serviços são da pior qualidade - como, de resto, em qualquer outra roça. Não obstante, pra mim, tudo bem; duvido que eu encontre lugar melhor. Depois de vinte anos morando em São Paulo, também me conjugo com o Mário Lago e já me contento com nada além de uma linda ilusão. Mas olha: da cidade, eu não gosto.
Não gosto porque ela se pretende colonial, mas aparece como um lugarejo ordinário e sem caráter. Nela, cada casa, cada prédio se apresenta com um estilo diferente, lastimável, tresandando cheiro acre e gosto duvidoso, e é assim que o autêntico sempre assume uma cara de velho e o moderno é modernoso. Isto é, no mínimo, lamentável, porque a enseada de Angra foi visitada pela primeira vez em 1502, só dois anos depois da descoberta oficial do país, e a cidade já foi um modelo histórico, mas se entregou aos seus prefeitos e se deixou violentar por eles. Desse modo, em Angra, nada é como parece ser, ou deveria ser. Lá, não há capricho. Nenhum trabalho ou serviço merece atenção, esmero, bom acabamento, porque tudo é feito às pressas e termina malfeito, não obstante seja dado como resolvido - malresolvido, é claro. É assim até com as mulheres, principalmente as jovens. As mocinhas se apresentam vestidas com a última moda, cópias de modelos do Rio, Nova York ou Londres. Então, em quase tudo elas se assemelham à Garota de Ipanema, mas quando falam e dizem o que pensam, logo se percebe que elas são garotas de Angra. E eu também temo que os seus habitantes - uma gente tumultuada, que se junta aos milhares, sempre apressada, correndo de um lado para o outro, como se fossem formigas, o que é inexplicável num lugar onde nada é urgente - igualmente pequem pela falta de identidade. Não porque sejam diferentes entre eles, como as caras da cidade, o que é natural, já que são indivíduos, mas porque a natureza daquelas pessoas pode ter sido contaminada pela ambiguidade arquitetônica. Quem sabe? Por tudo isso, eu acho mesmo que ela, a cidade, mereceu ter sido excomungada por um Papa, lá pelos idos de 1800, porque um padre foi assassinado no adro de uma igreja, quando um marido surpreendeu a mulher em adultério com ele (o que não consta da sua envergonhada história oficial).
Pode ser que essa minha suspeita seja tão extravagante quanto o lugar, mas que aquela população é esquisita, ah, isso é. Há coisas que só poderiam acontecer lá. Um bom exemplo foi o caso do bode descoberto dentro de um ônibus, denunciado por uma costureira enojada pelo fato de ele estar lambendo o seu calcanhar. É bem possível que aquele pé não estivesse muito limpo e, portanto, salgado - uma delícia para o bode. Da minha parte, eu não gostei nada de ter sido levado a uma delegacia da polícia, envolvido numa discussão que durou várias horas, pra servir de testemunha contra um bode. Eu me senti humilhado. Foi lá que eu conheci de perto o dono do animal, um homem cuja fama a ele atribuída é a de melhor cozinheiro de buchadas do país. O bicho estava destinado a ser o almoço de um casamento para o qual ele, o dono, havia sido contratado. E também soube que a costureira, se dirigia para a mesma casa, num distrito nas proximidades de Paraty, e também já estava atrasada para a entrega do vestido da noiva, coincidência que, no fim dessa história, fez dela, a denunciante, uma companheira do dono e do bode, as vítimas, por força da conveniência de dividir a tarifa de um mesmo táxi. Mas ele, o dono, se manteve firme o tempo todo, recusando-se a pagar a passagem do bode, no que o trocador e o motorista tanto insistiam, enquanto ele não tinha um só tostão no bolso.
Em geral, eu exagero um pouco, confesso. Mas, a partir daí, desenrolou-se o seguinte drama, que eu vou tentar reproduzir com honestidade:
“Não me interessa se vocês dois estão atrasados”, sentenciou o motorista, depois de estacionar o ônibus no acostamento. “Por mim, ou ele paga a passagem do bode ou essa noiva vai se casar nua e com fome.”
Mais revoltada ainda, a denunciante investiu contra o trocador:
“Cabe a você tomar uma providência. Como é que esse bode entrou aqui?”
“Não, minha senhora”, observou, calmo, o trocador, “ele não ‘entrou’, porque um bode não vai deixar o pasto e preferir viajar de ônibus. Alguém o introduziu aqui.”
“Eu sei quem foi”, falou um outro passageiro.
Nesse ponto, em que uma nova denúncia estava pronta pra ser feita, um menino levantou a voz pra avisar:
“Olha, gente: o bode fez cocô.”
A revolta generalizou-se entre os cerca de 30 passageiros, e foi só então que o dono do bode se manifestou:
“Calma, pessoal,” disse ele, “esse não é um cocô comum.”
“Ah, sim”, segredou ao meu ouvido uma senhora sentada ao meu lado, “agora também existe um cocô especial, não é?”
“Tenham calma”, ele continuou, “porque um bode, pra dar uma boa buchada, precisa ficar quinze dias comendo apenas milho. Então, ele não é como certas pessoas, que sempre têm a boca suja pronta pra fazer denúncias.”
“Alto lá!,“ a costureira devolveu, “eu sou uma profissional de respeito. E bem aqui, neste ônibus, tem alguém que pode falar em meu favor.”
A minha surpresa foi grande, quando eu a vi apontando o dedo pra mim! Foi só depois de alguns segundos que eu reconheci a dona Maria, uma costureira de cujos serviços eu já tinha me servido - aliás, de péssima qualidade.
O que aconteceu não é o que o senso comum pode esperar, porque não foi a presença do bode, mas, sim, a tentativa de calote o motivo de irmos todos para a delegacia, onde a minha boca se abriu de espanto, quando um investigador, travestido de delegado, mandou o bode e o seu dono para a mesma cela. E só revogou essa decisão quando eu resolvi pagar a tal passagem.
Eu estava no ônibus, tentando chegar no FLIP de Paraty, assim como também a Lucy, outra conhecida minha, ex-cozinheira e, agora, mecânica de automóveis. Ela mesma, a Lucy, não destoa naquela comunidade, e serve como exemplo da “originalidade” dos angrenses. Não por causa da sua nova profissão, rara entre as mulheres mas que ela desempenha com maestria (ela cuida do meu carro), mas porque comprou uma rua. Isso mesmo, ela comprou a rua onde mora. Eu não sabia - e disse isso a ela - que uma prefeitura podia vender uma rua. Mas a de Angra vendeu, e eu vi a escritura. Mais ainda: uma rua com a triste fama de ser mal-assombrada, onde mesmo os empregados da companhia de eletricidade do município se recusam a entrar até pra trocar as lâmpadas dos postes, quando queimam. Talvez tenha sido vendida por isso mesmo: era desvalorizada; ninguém queria morar nela.
Enfim, eu não gosto de Angra porque identifico nela esse excesso de excentricidades. Ah!, assim também já é demais.
Engana-se quem acredita na placidez da roça. Eu costumo brincar, dizendo que, “Nesta região, as novidades são todas antigas”. Mentira! É verdade que elas não nos chegam pelos jornais, até porque eles são desnecessários, numa vizinhança que não é afetada, nem pela indecisa política monetária do País, nem pelas decisões restritivas da União Européia. Afinal, pra quê importar singularidades, se a produção local é tão fértil? Pode ser que a população dos arredores de Angra não participe da civilização atual, mas... e daí? Não me consta que o mundo venha dando bons exemplos a serem seguidos por uma gente que tem lá as suas crises, sim (as quais não provêm de hipotecas gananciosas), mas não mata nem rouba, e até só mente por brincadeira.
É verdade que eu sou um observador compulsivo; não nego. Mas ninguém vai agora me acusar de xeretar a vida dos habitantes de Angra, porque os fatos que lá ocorrem, em geral, caem no meu colo. Foi isso o que aconteceu outro dia, quando eu me sentei num banco da praça principal. Alguém que me observasse de volta, talvez pudesse pensar: “Lá vem ele, meter o nariz nas intimidades da cidade.” Mas não foi assim, não. Mal eu me sentei e a vendedora de bijuterias saiu da barraca pra me pedir um cigarro. Com os seus cerca de 30 anos, desatou a me contar um passado de garota rebelde, confidenciando que fugiu de casa aos 15 anos, pra viver sem dinheiro, com o namorado, na Ilha Grande, num romance que durou apenas um mês. Confessou que, com ele, aprendeu a fumar maconha e a fazer bijuterias. "Hoje", esclareceu, "vivo disso." Tanta franqueza me incomodou um pouco, mas escondia um segredo.
Pra mim, aquela história nada tinha de original ou atraente. Eu estava preferindo a minha observação do formigueiro. Mas ela parecia estar revivendo, tão empolgada que, por duas vezes, eu tive de alertá-la para as possíveis freguezas que paravam junto da barraca e, em não sendo atendidas, prestavam atenção à conversa. Em pouco tempo ela reuniu quatro ouvintes, me esqueceu totalmente, passou a falar pra audiência, e, no fim, não vendeu nada. A impressão que eu tive é que, mesmo pra ela, as bijuterias eram secundárias. E eu estava certo. Bastou eu prestar mais atenção pra perceber uma frequência incomum na sua barraca. Ué?, o que querem todos esses jovens, rapazes? Estariam interessados em brincos e colares? Ora!, é claro que não. E eu descobri a verdade: ela vive mesmo é da outra coisa que aprendeu com o namorado.
Foi só aí que o Borges errou. A periferia de Angra é uma exceção à sua regra: ela existe. Pode ser que esteja perdida numa região inteira que é um deserto em termos de cultura clássica. Mas pra quem consegue observá-la de perto, ela se exibe com o seu farto e paradisíaco folclore.
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