Definição

... da totalidade das coisas e dos seres, do total das coisas e dos seres, do que é objeto de todo o discurso, da totalidade das coisas concretas ou abstratas, sem faltar nenhuma, de todos os atributos e qualidades, de todas as pessoas, de todo mundo, do que é importante, do que é essencial, do que realmente conta...
Em associação com Casa Pyndahýba Editora
Ano VI Número 63 - Março 2014

TUDA - pap.el el.etrônico

Em associação com Casa Pyndahýba Editora
Ano I Número 2 - Fevereiro 2009
Capa de José Geraldo de Barros Martins

Dívida Interna
Editorial

Palavras QuebradasPalavras ContínuasPalavras AlheiasForeign Words - Palavras Estrangeiras
Palavras Já Ditas
Palavras Mostradas
Palavras Enviadas

TUDA - pap.el el.etrônico

Em associação com Casa Pyndahýba Editora
Ano I Número 2 - Fevereiro 2009
Conteúdo
Corpo Técnico

Editorial

Palavras Quebradas
Palavras Contínuas
Palavras Alheias

Foreign Words - Palavras Estrangeiras

Palavras Já Ditas

Palavras Mostradas

Palavras Enviadas

tuda - pap.el el.etrônico

Em associação com Casa Pyndahýba Editora
Ano I Número 2 - Fevereiro 2009
Dívida Interna

Editor
Eduardo Miranda

Capa
José Geraldo Martins

Colaboradores

Asky Klafke, Arnaldo Xavier (in memorian), Ciarán MacSamhráin, Dorival Fontana, Eduardo Miranda, José Geraldo Martins (JG), Marco Rheis, Roniwalter Jatobá, Santiago de Novais, Souzalopes, Victor Giudesci (in memorian), Wladimir Augusto.

Revisão
Túlia Lopes & Eduardo Miranda

E-mail
tuda.papel.eletronico@googlemail.com

tuda - pap.el el.etrônico

Em associação com Casa Pyndahýba Editora
Ano I Número 2 - Fevereiro 2009
Editorial - Eduardo Miranda

Urbi et Orbi!

Dos subúrbios para os grandes centros, da cidade para o mundo, do local para o global: urbi et orbi! Tem tanta coisa por aí que nem dá pra contar! Assim, a primeira boa notícia é que a TUDA está aí, no segundo volume! Mais uma batalha vencida - só por este mês, companheiro, um mês de cada vez!

E vem com tudo a TUDA! Primeiro com algumas emendas à edição anterior, algumas outras explicações que faltaram e muita, muita novidade. Mas o mais importante é que estamos todos vivos!

Das emendas das coisas: na edição anterior faltou anunciar algo sobre o poeta e amigo Arnaldo Xavier, falecido em Janeiro de 2004 - pouco antes do meu desterro. À parte (olha o meu galicismo aí!) de sua poesia - genial - as idéias de Arnaldo eram bem claras em relação a incentivos, manifestações e oportunidades comunitárias nos capos das artes e na literatura - principalmente na poesia. Sendo ele mesmo um dos idealizadores do que uma vez tentamos chamar de Revista da Casa Pyndahýba, nada mais justo que Arnaldo seja homenageado com poemas seus nas edições de TUDA - em TODAS! Até que se acabarem seus poemas ou até que se acabe a revista!

E pra não dizer que não falei das emendas - mea-culpa agora - houve um engano na publicação da crônica "O Primeiro Mico", de Dorival Fontana. Mas a beleza disso tudo é que, sendo eletrônica a revista, eu emendo a própria edição, assim os enganos desaparecem! Devidamente perdoado este que vos escreve, "O Primeiro Mico" original, como deveria ter sido publicado, está lá na TUDA de Janeiro. (Re)Confira!

No campo das novidades incluí duas novas seções: "palavras alheias", onde publicarei trabalhos enviados por leitores - não aqueles dos colaboradores; gente que nunca pensara em escrever, ou que escreve informalmente, sem pretensões profissionais, ou que tem pretensões profissionais mais nunca havia achado um meio de divulgar. A outra, "foreign words, palavras estrangeiras", onde pretendo publicar poesia de língua portuguesa traduzida para o inglês.

Também pretendo publicar todo o mês um algo de "clássico" da poesia brasileira. Para este mês, o escolhido foi João Cabral de Melo Neto e a sua poesia dura de pedra...

Conto com a ilustração do artista plástico e amigo José Geraldo Martins, que elaborou uma capa para esta edição. Nas traduções, Tim Finnegan's Wake, uma velha canção irlandesa que segundo estudiosos foi o mote inspirador para James Joyce escrever o célebre - e também polêmico e controverso - romance Finnegan's Wake. Ainda a tradução dos últimos haicais de Masoka Shiki e de um poema de John Updike, falecido em Janeiro último. Mais o conto kafkiano de Victor Giudice, a sensibilidade do poeta Santiago de Novais, o humor de Dorival Fontana, a ilustração de José Geraldo Martins, e a velha-guarda da Pyndahýba - Arnaldo Xavier, Souzalopes, Marco Rheis, Aristides Klafke e Roniwalter Jatobá.

É isso, e TUDA de bom!


Eduardo Miranda
editor

tuda - pap.el el.etrônico

Em associação com Casa Pyndahýba Editora
Ano I Número 2 - Fevereiro 2009
Poesia - Arnaldo Xavier

extraído do livro inédito "A Grande Obra"



Minha ferida é mais dourada
Do que a sua lâmina à flor da pele
sem brilho nenhum
Meu tumor é mais divino
Do que a sua falta de luz espinhosa
sobreface sem cura pulsa

Minha dor é mais profundíssima
Do que o seu mortocontínuo
relâmpago a rasgar coração
Meu corte é mais frieza detalhada
Do que a sua chama mínima
escorre sobre rasa solidão

tuda - pap.el el.etrônico

Em associação com Casa Pyndahýba Editora
Ano I Número 2 - Fevereiro 2009
Poesia - Marco Rheis


Viajante



Vejo este povo espalhado pelos lugares
onde muda de cor e feição mas muda nunca a explorada fé
na esperança do resistente olhar que desafia o descaso :
“há uma recompensa para o justo
sim, há um Deus que julga na Terra.”


O peito aparta a dor desta minha gente
- que caminha descalça na terra do chão -
mostrar seus costumes onde planje cega justiça
feita pela lei do homem que não mata a fome que mata
neste lugar onde o orgulho é ferido.

Não sinto peso de estar distante
onde tange caminho de luta sobra rastro e dor
ceifando chão onde morre desejo vem o destino
indicando naquela que leva e trás
o passo a passo errante que empurra:
vai caminhar!

tuda - pap.el el.etrônico

Em associação com Casa Pyndahýba Editora
Ano I Número 2 - Fevereiro 2009
Poesia - Santiago De Novais



Em Chamas

Se me pintar não borde-me
Sinto como os girassóis de Arles
.......
Mas não é culpa minha
É ele que me olha como a 1 Van Gogh.
......
Me sinto uma perna de moça de pôster art-noveau
Mas é a mão dele
Que risca minha pele com a ponta dos dedos
Como pincéis de Van Gogh.
...

É que eu nem quero falar.
Como se o piano recusasse o pianista
Mas o pianista o abrisse e o tocasse.

tuda - pap.el el.etrônico

Em associação com Casa Pyndahýba Editora
Ano I Número 2 - Fevereiro 2009
Poesia - Dorival Fontana




Desinformática

Fax amor
num chip impulso
células elétricas
gozam frequências
precoce mente voláteis
mega memórias
geram saudade.

Moden’s contatos
membros on line
enter dedos
erase sentimentos
num nanosegundo
masturbemo-nos...

Ave windows
Salve sistemas
Abençoado seja
Bill Gates.

Mouse a mouse
Site a site
Vídeos procriam
Pixel’s imagens.

Hardware sapiens
Giga neurônios
Alimentam impulsos
Ao ciberespaço.

Tudo ao e-1/2
Todos à rede
Tecer é preciso
Naveguemos.

Geração Deus
Cibernética maçã
Digitalizado caos
Globobalizado.

tuda - pap.el el.etrônico

Em associação com Casa Pyndahýba Editora
Ano I Número 2 - Fevereiro 2009
Conto - Victor Giudice

(1934-1997) Carioca de Niterói, também foi crítico de música clássica do Jornal do Brasil. Ainda que seus livros cantem a cidade e o bairro de São Cristóvão, na Zona Norte carioca, Giudice é um autor universal, num estilo que lembra Kafka e Borges. O Arquivo, seu terceiro conto, saiu no livro NECROLÓGIO - Edições O Cruzeiro, 1972, e foi publicado em oito países.

o arquivo
Desenho do autor
No fim de um ano de trabalho, joão obteve uma redução de quinze por cento em seus vencimentos. joão era moço. Aquele era seu primeiro emprego.
Não se mostrou orgulhoso, embora tenha sido um dos poucos contemplados. Afinal, esforçara-se. Não tivera uma só falta ou atraso. Limitou-se a sorrir, a agradecer ao chefe.
No dia seguinte, mudou-se para um quarto mais distante do centro da cidade. Com o salário reduzido, podia pagar um aluguel menor.
Passou a tomar duas conduções para chegar ao trabalho. No entanto, estava satisfeito. Acordava mais cedo, e isto parecia aumentar-lhe a disposição.
Dois anos mais tarde, veio outra recompensa.
O chefe chamou-o e lhe comunicou o segundo corte salarial.
Dessa vez, a empresa atravessava um período excelente. A redução foi um pouco maior: dezessete por cento.
Novos sorrisos, novos agradecimentos, nova mudança.
Agora, joão acordava às cinco da manhã. Esperava três conduções. Em compensação, comia menos. Ficou mais esbelto. A pele tornou-se menos rosada. O contentamento aumentou.
Prosseguiu a luta.
Porém, nos quatro anos seguintes, nada de extraordinário aconteceu.
joão preocupava-se. Perdia o sono, envenenado em intrigas de colegas invejosos. Odiava-os. Torturava-se com a incompreensão do chefe. Mas não desistia. Passou a trabalhar mais duas horas diárias.
Uma tarde, quase ao fim do expediente, foi chamado ao escritório principal.
Respirou descompassado.
- Seu joão. Nossa firma tem uma grande dívida com o senhor.
joão baixou a cabeça em sinal de modéstia.
- Sabemos de todos os seus esforços. é nosso desejo dar-lhe uma prova substancial de nosso reconhecimento.
O coração parava.
- Além de uma redução de dezesseis por cento em seu ordenado, resolvemos, na reunião de ontem, rebaixá-lo de posto.
A revelação deslumbrou-o. Todos sorriam.
- De hoje em diante, o senhor vai passar a auxiliar de contabilidade, com menos cinco dias de férias. Contente?
Radiante, João gaguejou alguma coisa ininteligível, cumprimentou a diretoria, voltou ao trabalho.
Nessa noite, não pensou em nada. Dormiu pacífico, no silêncio do subúrbio.
Mais uma vez, mudou-se. Finalmente, deixou de jantar. O almoço era um sanduíche. Emagreceu, sentia-se mais leve, mais ágil. Não havia necessidade de muita roupa. Eliminou certas despesas inúteis, lavadeira, pensão.
Chegava em casa às onze da noite, levantava-se às três da madrugada. Esfarelava-se num trem e dois ônibus para garantir meia hora de antecedência.
A vida foi passando, com novos prêmios.
Aos sessenta anos, o ordenado equivalia a dois por cento do inicial. O organismo acomodara-se à fome. Uma vez ou outra, saboreava alguma raiz das estradas. Dormia apenas quinze minutos. Não tinha mais problemas de moradia ou vestimenta. Vivia nos campos, entre árvores refrescantes, cobria-se com os farrapos de um lençol adquirido há muito tempo.
O corpo era um monte de rugas sorridentes.
Todos os dias, um caminhão anônimo transportava-o ao trabalho.
Quando completou quarenta anos de serviço, foi convocado pela chefia:
- Seu joão. O senhor acaba de ter seu salário eliminado. Não haverá mais férias. E sua função, a partir de amanhã, será a de limpador de nossos sanitários.
O crânio comprimiu-se. Do olho amarelado escorreu um líquido tênue. A boca tremeu, mas nada disse. Sentia-se cansado. Enfim, atingira todos os objetivos. Tentou sorrir:
- Agradeço tudo que fizeram em meu benefício. Mas eu vou requerer minha aposentadoria.
O chefe não compreendeu:
- Mas seu joão, logo agora que o senhor está desassalariado? Por quê? Dentro de alguns meses já vai ter de pagar a taxa inicial para permanecer em nosso quadro. Desprezar tudo isto? Quarenta anos de convívio? O senhor ainda está forte. Que acha?
A emoção impediu qualquer resposta.
joão afastou-se. O lábio murcho se estendeu. A pele enrijeceu, tornou-se lisa. A estatura regrediu. A cabeça se fundiu ao corpo. As formas desumanizaram-se, planas, compactas. Nos lados, havia duas arestas. Ficou cinzento.
joão transformou-se num arquivo de metal.


Este conto foi extraído da página pessoal do autor, em http://www.victorgiudice.com.

tuda - pap.el el.etrônico

Em associação com Casa Pyndahýba Editora
Ano I Número 2 - Fevereiro 2009
Conto - Roniwalter Jatobá


A mão esquerda

Ruas, todas no Brás, cheias de vai e vem no fim da tarde: Rangel Pestana, Joaquim Nabuco, Gomes Cardim e a Cavalheiro cheia, também, de ônibus que vão cruzar estradas, Estados e, gente nas ruas, aqui, bestando, correndo pra estação do trem da Central procurando rumo de São Miguel Paulista, Guaianases, Moji, passando homens, mulheres, crianças, todos com seus sonhos, sem sonhos e sonolentos, que partem, que chegam, que trazem esperanças, que voltam vazios de fé, bem vestidos de roupas coloridas, jaquetas compradas a prestações, já liquidadas na Rua Oriente, Maria Marcolina, que apreciam violeiros no Largo da Concórdia e discos ouvidos nas portas das lojas, que compram elixir milagroso de um homem apregoando o remédio para todos os males do corpo.

Você, parado, olhando as rodas de gente observa os passos dos homens neste começo de noite e o movimento da rua, lhe xingam por atrapalhar o rebuliço na calçada apertada, você nem liga e só chega mais pra perto do meio-fio dando passagem. Continua olhando o motorista de um ônibus quando ele começa a receber as passagens, depois, quando coloca as malas no bagageiro. Pra você tudo aquilo por ora é importante, parece ser, depois você descobre que existe na calçada do outro lado da rua um homem parado, calado, que olha o ônibus, aí, ele vai se aproximando devagar, devagarinho no rumo do ônibus, vai se esforçando em carregar a mala com a mão direita. A mão esquerda, você vê, aparece dentro das suas vistas como uma volumosa mancha branca. A mancha, agora, cresce dentro destes olhos seus.
No homem: existe uma história, uma linguagem que é parecida com a sua, uma magreza na face que é a magreza sua, e você se sente como se fosse ele. E assim é.

Não há dúvida que o ônibus é aquele. Nada mudou: o azul tomando toda a lataria, faixas brancas correndo pelo azul, o cavalo empinando e querendo galopar desenhado na porta, o motorista outro, neste anos. Hoje, assim como o motorista mudou, não há na calçada da Rua Cavalheiro aquele menino que chorava medroso agarrado às calças brancas do homem, deixando as marcas de suas mãos meladas de doce, que havia na vinda, quatro anos contados nos dedos firmes, bem assim cheguei. Havia o medo da rua que eu olhei, conferi um lado da rua, o outro, e senti tudo estranho no que eu via, esse mundo de São Paulo, de sonhos sonhados nas beiras do rio me empapuçando de jaca mole ou rezando com o pensamento nessa terra, lá, nas novenas de janeiro com o olho gordo nas formas das moças: Deolinda, Mila, Tonha, todas.

Tento me esforçando segurar a mala com a mão direita, a mão canhota me dói, me arde, queima como se brasa corresse a pele, desisto, confiro a passagem. Não sinto os dedos ou restos de dedos da mão esquerda que estão escondidos nesta faixa de pano branco, agora, pardo sujo de poeira que balança ao menor movimento do meu corpo, o braço procurando apoio, doendo. Levanto a mala e saio arrastando o peso no rumo dos ônibus, pessoas passando apressadas, como um coro barulhento de vozes, deles, e se perdem, os vultos, nas ruas atrás dos postes e das cores dos carros. Agora, volto no acompanhamento das notícias que já foram, há dias, avisando.

Fico lembrando a mesa da prensa pintada de tinta recente, azul, o molejo dela no sobe e desce e minha mão que ficou parada como mão de morto, mão de morto pois nem veio no pensamento da cabeça aquela vontade e ligeireza de puxar a mão, fiquei na frieza de um homem morto, a mão recebeu a força das toneladas de peso, ainda vi a cor do sangue, os dedos esmagados, esfolados numa cor só, e fui vendo a morte, o medo de morrer que se fez sentir com os gritos que soltei, gritei, gritei de dor, raiva de acontecer aquilo, o grito ecoando nas outras prensas, homens correndo, vi, homens me segurando nos braços, segurando agarrando minha cabeça que começava a pender de banda, vi, o assoalho lavado de sangue, fui vendo, vendo, sumindo, se apagando os homens, neblinando nas vistas os dedos sujos, nada mais vi. Depois, vi a roupa branca do enfermeiro, o olhar dele de dó, a minha mão parada, quieta ao lado do corpo, sem dor na hora agora, só pesada sem se bulir, um frio em todo o corpo de vento gelado. E foi passando na cabeça o meu choro, o sangue melando a máquina, o azul dela, fui sentindo vergonha, não me veio um tico de nada de ódio da prensa, da prensa que me deixou com tocos de dedos, um homem aleijado, inutilizado como dizem por aí, não, não senti raiva cega da máquina, só da minha fraqueza, do meu medo, do descuido, do choro, essa mão, agora, pois vê, pesada e quieta como se não parecesse minha.

Natanael Martins, filho de Elias e Marta Martins, solteiro, vinte e três anos... assim preenchi a ficha na fábrica, rabiscando, desenhando as letras bem como dona Zilda tinha ensinado. Empregado, fichado, carimbo estampado em azul nas páginas da profissional, na primeira semana de serviço na fábrica, beirada de linha Santos-Jundiaí, na Lapa. De pouco tempo, aqui, ficava achando impossível escutar, pois escutava, o barulho da bigorna na ferraria do meu pai, aquele barulho de lá, zunindo, se indo pelas frestas da casa, os ouvidos de mãe acostumados, nem ligando mais, o zunir de ferro contra ferro, ferro saindo em labaredas, se queimando, vermelho em brasa, e aquele toque se pondo em choque na rua, se escutando ao longe, eu na ajuda, repicando, aprendendo.

Uma semana, duas semanas, três semanas, fui dizendo isso pra casa, informando a família que nesse tempo, agora passado, já tinha a carteira profissional fichada, no primeiro pagamento, que não é muito, mando alguma coisa, um adjutório. Uma carta que queimava a mão, que me suava entre os dedos, que foi seguindo por mão própria e daqui a três dias mãe ia sair pela noite, ia cruzar a rua com um candeeiro em cima da cabeça alumiando os seus passos, o vento ia zunir de leve no tempo morno fazendo tremular a labareda e ia aí alguém ler pra ela essas linhas que escrevo neste quarto.
Terceira semana aqui em São Paulo é o começo de tudo. Segunda-feira me levantando no chegante da manhã e me indo como todo mundo vai no rumo da Lapa. Tudo em volta, a viagem de trem que me atrai sempre, atraindo mais, desço do trem, caminho pela rua da fábrica, confiro a profissional no bolso da calça, pergunto as horas ao primeiro passante, seis e quinze, o homem me responde assustado e caminha apressado pela rua coberta de fumaça branca de neblina, encosto na parede esburacada da fábrica e fico esperando o horário das sete que vai fazer acordar o movimento do prédio que, agora, parece tão morto, tão triste e silencioso.

Você vai indo sentado de olhos parados e encostado ao vidro da janela do ônibus e vê a rua. Nada pra você é estranho: a rua, a fábrica que você vê todo dia, o mendigo encolhido tremoso de frio coberto de jornal naquela esquina, o vento que sopra dos trilhos como soprado pelas locomotivas que passam pegando velocidade e você passa dentro do ônibus olhando a rua, quem sabe até me vê caminhando nessa hora da manhã no rumo da fábrica nesse primeiro dia de trabalho ou me vê já parado quieto aqui na frente esperando a hora, sete horas. Não lhe aceno nem você também, somos estranhos e desconhecidos.

Às sete horas, faça sol ou chuva, a fábrica começa a se movimentar, vou caminhando entre as máquinas, muitas máquinas que tomam os cantos, o meio e os lados do grande terreno construído há muito tempo. Pouco converso, logo não conheço ninguém, faço só o que me mandam. Gostaria de falar de pai, do trabalho dele na ferraria de sol a sol com dias entrando na noite, sei, aqui ninguém conhece ele. Nem o lugar de onde vim, como é mesmo o nome?, isso quando pude falar, repeti, não conheço não, dizem. Quem iria conhecer o Elias Ferreiro?, fico me achando bobo por achar que esses homens que trabalham nessas máquinas tão cheias de vida, tão ligeiras que sobem e descem no simples apertar do botão, depois no pedal, sobem e descem com as peças saindo de lado, prontas, certinhas como se Elias Ferreiro tivesse trabalhado, suado na forjaria, suando na bigorna três semanas pra fazer uma, uma só peça tal e qual, tivessem ciência da vida dele.

Dias, sempre, ficava, entre uma labuta e outra, olhando as chapas de aço fino seguras nas mãos de seu Ismael, vendo seu Ismael apertar nos botões, o pé no pedal, botar a chapa uma por uma na mesa da prensa e a prensa descer, subir, descer, consumindo as chapas e fazendo delas peças e mais peças. Eu ficava como dormindo, esquecia o outro serviço, depois me lembrava, corria fazendo a obrigação, voltava e me postava junto da prensa com o corpo parado, quieto, quase não se movendo, as vistas descendo e subindo como o movimento da máquina, no acompanhamento dela. Seu Ismael me olhava com cara de pai, sorria do meu interesse e dizia que olhando se aprende, ele tinha aprendido assim, vai vendo, vai gravando na cabeça os botões, o pedal, quem sabe um dia precisem de alguém pra ficar no meu lugar, não lhe aconselho esse serviço de doido, completava. Não gosto de falar nesse homem, o caso do seu Ismael como falam por aí, que me ensinou, me fez ver as artimanhas da prensa, resumia os perigos dela -- cuidado!, depois, a máquina alcançou a sabedoria dele, alguns dizem que ele já era velho, não achava, foi descuido, cochilo na hora que a prensa desceu e encontrou a mão dele, os dedos no caminho, cortou fora só um, muita sorte, disseram.

Todos os dias, o movimento das máquinas que batem e rebatem, as peças ficando prontas, o barulho das prensas fazendo com que a gente pouco converse dentro da fábrica, pouco se fale, a zoada escondendo as nossas vozes ou fazendo entender as palavras muito mal. Pouco ligava pra conversa. Ficava era olhando querendo aprender. Queria aprender a apertar aquele botão verde na hora certa, ver a chapa fina se transformar naquela peça que se esconde em todos os carros.

E toda noite de domingo escrevia pra casa contando dessa vitória, que um prensista disse que ia me ensinar, estava quase aprendendo, ia me fazer prensista igual a ele. Querendo aprender a apertar aquele botão vermelho que segura a máquina, a prensa fica parada no ar esperando o outro botão, o pedal ser apertado, ficava só olhando, tudo aquilo ia entrar no juízo não ia demorar muito, contava imaginando.

Durante as noites ficava rabiscando no papel uma maneira de aprender mais ligeiro, que aquela idéia toda me entrasse na cabeça, que aqueles botões não se embaralhassem nesse juízo de pouco estudo e, quando eu novamente escrevesse pra casa e contasse pra pai que trabalho naquela máquina, o nome dela é prensa, diria o modelo, a tonelagem da força dela, aquela máquina que faz o serviço de um ano dele em poucas horas, ele não vai acreditar e vai pedir pra dona Zilda, que é quem escreve as cartas respondendo as minhas, pra sondar como é a máquina, se é grande, como ela trabalha, quantas pessoas lidam com ela. E de noite quando estiver lá no quarto da pensão na Rangel Pestana, que rasgar o envelope, que começar a ler as palavras dele, sei que vou rir da pouca sabedoria dele, dele nem imaginar nada daquela máquina que tem lá na fábrica. Sei, sim, que vou rir.

E vou continuar a rir, amanhã no trem, no primeiro trem da manhã, me rindo e me perguntando por que todo mundo que anda ali no trem, encostado na porta, respirando o vento frio e molhado dessa hora fica com a tristeza estampada no rosto, olhos pesados, sanados, pouco conversa. Como gostaria de contar pra alguém, dizer da máquina, da prensa pintada de azul com os botões azuis, vermelhos, verdes e que faz vencidades de peças por dia. Mas todos dentro do trem parecem dormir.

No domingo, pego na caneta e escrevo pra casa. Vou contar que já tomo conta da máquina sozinho, vou dizer que a sorte me ajudou, não vou contar do acidente, do dedo de seu Ismael perdido, conto que seu Ismael adoeceu, assim não preocupo o juízo fraco de mãe, escrevo que faltou gente pra botar a máquina pra funcionar, me ofereci, ninguém, acho que nem eu acreditava, coloquei a máquina pra virar, no começo o movimento da prensa foi devagar, devagarinho, depois, já quase no final da tarde, ela descia e subia na ligeireza do meu pé que tocava o pedal de comando.

E no trem no fim da tarde aparecia a minha prensa, toda azul me aparecendo perfeita como era lá na fábrica, pelo vidro sujo da janela. Olhava para os lados, uma vontade crescente de pegar alguém pelo braço e pedir pra ele ver também na janela até a marca da máquina que aparecia completa no fosco do vidro. Ninguém acreditaria, mesmo, me chamariam de doido ou ririam da minha cara, achava. Quietava num canto. Ficava sozinho com esta minha visão que sabia não ser verdade, mas acreditava nela.

Não via a hora do domingo passar, escrevia a carta no fim da tarde ou ficava vendo as pessoas passarem em direção aos bares do Brás, no rumo do Cine Piratininga, nada disso me animava, como ia dizendo, escrevia a carta que na segunda-feira iria para o correio, e ficava torcendo que o resto do domingo se fosse mais rápido, que o domingo desaparecesse logo, que o dia findasse, que a noite aparecesse e no sono da noite as horas corressem ligeiras. E chegasse a segunda-feira. Pulando da cama antes do toque alto do relógio despertador. Pegando o primeiro trem da manhã, descendo na estação e me indo devagar pela rua que já se movimenta de gente, chegando em frente à fábrica faltando meia hora pras máquinas começarem a funcionar no trabalho diário, não vendo a hora que os relógios apontassem o ponteiro nas sete horas. Aí, vendo a máquina, a prensa, como viva na minha frente, parecendo gente de corpo, de alma, a máquina que fazia o trabalho de mil Elias, meu pai, Ferreiro, parado e lento Elias, bem comparado.

O motorista do ônibus vê a minha mão enfaixada enrolada de pano e segura na mala me ajudando. Ele pega a passagem. Subo no ônibus. Parece que mudei nesses derradeiros dias, devo ter mudado. Quando comecei a trabalhar na prensa, na máquina de seu Ismael, esqueci do mundo e dele que tinha me ensinado, achava que aquilo era tudo que queria na vida. Sem os dedos não vai ser mais prensista, dizem, agora. E contei nas mesmas linhas da carta essa história toda pra Elias e Marta. E quando minha mãe subir a ruazinha de candeeiro na cabeça, carta amassando no escuro da noite, a luz apaga não apaga no rumo da casa de dona Zilda, quando dona Zilda começar a ler a carta, esta carta que escrevi há quatro dias, ela vai enrugar a testa, dar uma parada na leitura, olhar pra minha mãe, meu pai vai tossir forte naquela tosse forte dele limpando a garganta e vai lá fora pra dar uma cuspida no terreiro, enquanto isso dona Zilda vai ficar olhando pra minha mãe, vai dizer estranho, vai saltar as linhas em que eu falo da minha mão e dos dedos perdidos e, quando meu pai novamente entrar na casa limpando o nariz na manga da camisa curta, dona Zilda vai esperar ele sentar na cadeira, ela vai enrugar e desenrugar a testa e vai dizer que seu filho Natanael já vem quase chegando.
Mais tarde, não vai ter ninguém naquela hora acordado, mas o massacre daquela bigorna vai encher o silêncio da noite de um som alegre de chegada acordando meio mundo.
Mãe vai dizer: Elias vai dormir!
Ele vai responder: não, o repique na bigorna, a brincadeira de repicar no ferro do homem aqui e Natanael, meu filho, logo vai recomeçar.
E parece que você sentado na poltrona do ônibus vai vendo o velho Elias forjar a ferradura vermelha em fogo sobre a bigorna e olha o ferro em brasa que esfria sobre a mesa, esperando o retoque final, o retoque final seu.
E você no pensamento pergunta respostando:
Ferreiro Natanael onde andou teu corpo?
Sei que andou andou;
Prensista Natanael onde andou tua mão?
Sei que andou andou:
Homem Natanael onde andou teu sonho?
Sei que andou andou
Ferreiro, Prensista, Homem Natanael onde andou tua vida?
Desandou desandou
E Elias, teu pai, Elias Ferreiro, esperando, de longe, grita:
Filho Natanael, pois retoque e repique este ferro em brasa na bigorna tua.

TUDA - pap.el el.etrônico

Em associação com Casa Pyndahýba Editora
Ano I Número 2 - Fevereiro 2009
Tradução - Eduardo Miranda & Ciarán MacSamhráin*

Eu Sou o Eire

Pádraig Mac Piarais *

Eu sou o Eire*:
Mais velho que a Bruxa de Beare*.

Tamanha é minha glória:
Eu, que dei cria ao bravo Cão de Cullen*.

Tamanha é minha vergonha:
Meus irmãos venderam sua própria Mãe.

Tamanha é minha dor:
O eterno inimigo que nos atormenta sem parar.

Tamanha é minha tristeza:
Todos em que eu depositava minha fé morreram.

Eu sou o Eire:
Mais desolado que a Bruxa de Beare.

Mise Éire

Pádraig Mac Piarais

Mise Éire:
Sine mé ná an Chailleach Bhéara.

Mór mo ghlóir:
Mé do rug Cú Chulainn cródha.

Mór mo náire:
Mo chlann féin do dhíol a máthair.

Mór mo phian:
Bithnaimhde do mo shíorchiapadh.

Mór mo bhrón:
D'éag an dream inar chuireas dóchas.

Mise Éire:
Uaignighe mé ná an Chailleach Bhéara.

* Notas do tradutor:

Pádraig Mac Piarais – também conhecido como Patrick Pearse, poeta, escritor, nacionalista e ativista político entre outras atividades, foi um dos líderes do Éirí Amach na Cásca, ou Easter Rising – O Levante da Páscoa – na Irlanda de 1916, quando os voluntários se rebelaram contra a ocupação dos ingleses. Foi declarado "Presidente do Governo Provisiório" da então formada República da Irlanda. Depois, com a queda dos "rebeldes", Pearse foi executado, junto com seu irmão e outros 14 líderes "revolucionários".

Eire – O poema é sobre a Irlanda. Eire era o nome da Ilha onde hoje se define a República da Irlanda mais a Irlanda do Norte, sendo que esta pertence ao Reino Unido. Ao escrever Éire, o autor se refere a toda a ilha, sem a atual divisão política e religiosa imposta pelos ingleses.

Bruxa de Beare Béara refere-se à península de Beare. Cailleach literalmente significa “velha mulher”. É uma figura muito antiga na mitologia céltica (com “c” de Celtic. O “g” de Gaelic foi introduzido em algum momento da história, influenciado pelos galegos, quando os celtas expandiram-se até onde hoje é a Galícia), e na maioria das vezes representa uma bruxa sagrada, também criadora, e possivelmente uma divindade ancestral, de alguma forma endeusada. De acordo com o folclore irlandês, “ela existe desde a eternidade do mundo”, e é a mãe dos Fomóraig (raça semi-divina que habitou o Eire na era pré-céltica, seres anteriores aos deuses, similares aos Titãs gregos). Uma curiosidade quanto à grafia: por vezes pode-se ler Chailleach e Bhéara ao invés de Cailleach e Béara. O “h” nos substantivos Chailleach e Bhéara dá-se por causa do artigo definido “an” (a) que antecede os substantivos – composto, no caso – que segundo a gramática irlandesa, são necessário para “suavizar” a pronúncia.

Cão de Cullen Cú Chulainn é provavelmente o mais famoso personagem do folclore irlandês. Em irlandês, significa cão de caça e Culainn é um nome próprio. Este personagem originalmente se chamava Sétanta, mas passou a ser conhecido como Cú Chulainn depois de ter matado o feroz cão de caça de Culann em legítima defesa, e se oferecido para tomar seu lugar até que outro fosse encontrado. Acabou por se tornar o mais famoso personagem dos Red Branch – um grupo legendário de soldados na Irlanda do Norte. Ele aparece em várias passagems do Táin Bó Cúailnge (pronuncia-se TAUN BOUL CUULNIA), uma história legendária da antiga literatura irlandesa, considerado um épico, comparado à Ilíada ou à Odisséia.

Um agradecimento especial para Ciarán MacSamhráin pelo patrimônio folclórico e cultural, sem os quais não seria possível uma tradução digna.

TUDA - pap.el el.etrônico

Em associação com Casa Pyndahýba Editora
Ano I Número 2 - Fevereiro 2009
Tradução - Eduardo Miranda

Os Três Últimos Haikus de Masaoka Shiki

Exercício de Tradução Comentado

Extraídos do livro 子規句集 岩波書店 - Coletânea de Haikus de Shiki, Iwanami Editora, 1993.
Por causa de uma doença debilitante, Masaoka Shiki teve de se confinar em sua cama por quase 7 anos até vir a falecer. Apesar da dor, ele continuou escrevendo seus poemas, mesmo deitado... Pouco antes da sua morte, um de seus discípulos, Hekigoto, que estava na cabeceira da cama de Shiki, registrou quando ele escreveu seus últimos três haikus:

Foi em torno de 10 na manhã do dia 18 setembro. Eu embebi o seu velho pincel ao ponto da haste e da brocha estarem encharcados de tinta, e fi-lo segurá-lo com a mão direita. Então, Shiki começou a escrever abruptamente no centro do papel, "bucha brota", e um pouco ao lado dessa frase, manejando seu pincel como em um sopro, "sufocada em catarro". Fiquei curioso para saber o que ele iria escrever a seguir, e fiquei aguardando a próxima frase, quando finalmente ele escreveu "a esperada morte". Isto tocou meu coração.
Hekigoto sentiu-se profundamente tocado ao testemunhar Shiki escrevendo seus últimos haikus. Ele estava tão fraco, e tossindo desesperadamente, mas ainda assim tinha a determinação de escrever estes haikus.




一。
糸瓜咲て淡のつまりし仏かな

1.
hechima saite
tan no tsumarishi
hotoke kana

1.
bucha brota
sufocada em catarro…
a esperada morte.


二。
淡一斗 糸瓜の水も間にあわず


2.
tan itto
hechima no mizu mo
maniawazu

2.
tanque de muco.
mesmo o suco da bucha
não é o bastante.


三。
をととゝひのへちまの水も取るざりき


3.
ototoi no
hechima no mizu mo
torasariki

3.
o suco da bucha
de anteontem
tampouco foi extraído.




Tradução Comentada dos Haikus

Primeiro Haiku

糸瓜咲て淡のつまりし仏かな。


SHI, ito: thread; fino fio.


KA, uri: melon; melão.

糸瓜
hechima: sponge gourd, loofah: cabaça esponjosa, loofah: bucha: planta trepadeira da família Luffa cylindrica.


SHOO, sa(ku): bloom, blossom: brotar, florescer.


te (part): meio, caminho.


TAN, awa(i): light, faint, pale, a little, phlegm, sputum: catarro. Embora seja seguido da preposição “no” (の), o que sugere a leitura japonesa, Shiki grafou em hiragana a leitura deste kanji como TAN, sua leitura chinesa.


no(partícula): de, em, sobre, sob.

つまり
tsumari: that is, in short, in a word, after all; tsumaru: be stopped


shi: and, and also, so...: usado em fim de frase incompleta, sentido vago, reticência.


BUTSU, FUTSU, hotoke: death, the deceased: morte, morto.

かな
kana: I wonder (if), I don't know.

Outras traduções

Algumas traduções trazem diferentes interpretações da leitura dos ideogramas. Por exemplo, a tradução inglesa feita pelo Shiki Team chegou à seguinte solução:
sponge gourd has bloomed
choked by phlegm
a departed soul
que numa tradução livre, poderia ser:
brotou a bucha
sufocada pelo muco
espírito morto
Há também Janine Beichman, mais ousada no sentido, que se desvia da morbidez do poema:
The gourd flowers bloom
But look, here lies
A phlegm-stuffed Buddha!
que numa tradução livre, poderia ser:
flores de bucha florescem
mas veja, aqui jaz
um Buda recheado de catarro!
Nota-se que Beichman, mesmo indo contra a grafia hiragana original de Shiki, optou pela leitura on ou chinesa – do kanji仏(BUTSU – Buda) ao invés da leitura kun – ou japonesa – (hotoke - morte). Mesmo não sendo usual – a leitura chinesa de um kanji sucedido de um sufixo em hiragana – é uma solução interessante, dentro do contexto mórbido-religioso do conjunto dos três últimos haikus de Shiki. Em minha versão optei pela leitura kun deste kanji, tanto pela precisão do sentido, quanto pela preocupação expressa por Shiki em grafar a leitura desejada.



Segundo Haiku

淡一斗 糸瓜の水も間にあわず。


TAN, awa(i): light, faint, pale, a little; phlegm, sputum: catarro.


ICHI, ITSU, hito(tsu), hito-: one, a.


TO: (unit of volume, 18 liters), ladle, dipper: concha (para sopa), mergulhador, caneca (para tirar água).

糸瓜
hechima: sponge gourd, loofah: cabaça esponjosa, loofah: bucha: planta trepadeira da família Luffa cylindrica.


no (part): de, em, sobre, sob.


SUI, mizu: water, Wednesday.


mo (part): too, also, besides.


KAN: interval, space, between(suf); KEN: (count for spaces on a go board, unit of length, around 1.8m); aida: interval (of space or time), between, among; ai: interval, between, cross(breed); ma: space, room, pause, a room, time, leisure, luck, the situation.


ni (part): (indicates a place) at, in, into, on, onto, to, toward, from, for, by, in order to.

間にあわ
maniawa - ma[nia]u, [awa], [at-te]: be in time, be useful, be enough.


-zu (aux): sufixo verbal negativo.

Outras traduções

O Shiki Team reforçou o sentido da limpeza do catarro nesta tradução:
gallons of phlegm
even the gourd water
couldn't clear it up
que livremente seria:
galões de catarro
mesmo o suco da bucha
não pôde limpá-lo
Janine Beichman enfatizou ainda mais a eliminação do catarro:
a quart of phlegm
even the gourd water
couldn't mop it up
que livremente seria:
um litro de catarro
mesmo o suco da bucha
não pôde eliminá-lo
Sendo o kanji 斗 (TO) a unidade de uma medida que não temos no Brasil (18 litros), ao invés de optar por unidades mais precisas, como galão (3,785 litros) ou litro, preferi utilizar algo mais abstrato, como tanque.



Terceiro Haiku

をととゝひのへちまの水も取るざりき。

をととゝひ
ototo hi: ototo-: (algo como o anterior do anterior); hi: dia: anteontem.


no (part): de, em, sobre, sob.

へちま
hechima: sponge gourd, loofah: cabaça esponjosa, loofah: bucha: planta trepadeira da família Luffa cylindrica.


no (part): de, em, sobre, sob.


SUI, mizu: water, Wednesday.


mo (part): too, also, besides.


SHU, to(ru): take; to(reru): can be taken, come off.


-ru (suf): indica plural.

ざり
saru (sari, sara, satte): leave, pass, resign.


ki: (1) mood, felling, (2) nature, disposition, temper, (3) intention, will.

Outras traduções

Esta tradução do Shiki Team se aproxima muito da solução que acabei adotando:
the gourd water
of the night before yesterday
they didn't get it either
em português livre teríamos:
o suco da bucha
da noite anterior
tampouco foi colhido
Também esta tradução de Janine Beichman se assemelha no seu sentido à minha tradução:
they didn't gather
gourd water
day before yesterday either
que em português livre seria:
tampouco colheram
o suco da bucha
de anteontem
O hechima é um fruto típico do Japão, cujo suco tem poderes expectorantes. Este fruto, quando seco, vira uma espécie de bucha. Acreditava-se que quando o suco desta bucha era extraído em noite de lua cheia, seus poderes eram maiores ainda. A noite anterior à da morte de Shiki era noite de lua cheia, mas a família de Shiki, diante de sua morte iminente, havia decidido não mais extrair o suco da bucha.



Dicionários utilizados nas traduções e bibliografia

THE KANJI DICTIONARY
ED. TUTTLE

NEW DICTIONARY OF KANJI USAGE
ED. GAKKEN

WEBSTER’S NEW UNIVERSAL UNABRIDGED DICTIONARY
BARNES & NOBLE BOOKS

JAPANESE-ENGLISH LEARNER’S DICTIONARY
MERRIAN WEBSTER

ENGLISH-JAPANESE DICTIONARY
ED. COLLINS SHUBUN

THE COMPLETE JAPANESE VERB GUIDE
ED. TUTTLE

DICIONÁRIO BÁSICO DE JAPONÊS-PORTUGUÊS
ALIANÇA CULTURAL BRASIL-JAPÃO
ED. MASSAO OHNO

A MODERN CHINESE-ENGLISH DICTIONARY
HAI FENG PUBLISHING CO. LTD — OXFORD UNIVERSITY PRESS

DICIONÁRIO CAUDAS AULETE
ED. DELTA

DICIONÁRIO AURÉLIO DA LÍNGUA PORTUGUESA
ED. NOVA FRONTEIRA

DICIONÁRIO HOUAISS DA LÍNGUA PORTUGUESA
ED. OBJETIVA

Masaoka Shiki, 1982, 1986
by Janine Beichman

TUDA - pap.el el.etrônico

Em associação com Casa Pyndahýba Editora
Ano I Número 2 - Fevereiro 2009
Tradução - Eduardo Miranda

Viajando

John Updike



passos cadenciados em corredores de aeroportos
bolinhos e cafés apressados das salas de espera,
quartos de hotéis onde os controles remotos das TVs
te esperam sobre a cama, como pistolas suicidas,
horas e horas de vôo entre pessoas engravatadas
que ao mesmo tempo dormem, lêem e assistem filmes,
e os restaurantes de cafés-da-manhã — o pasto dos hotéis —
que com o tempo, se tornam mais agradáveis que o lar.

Os brinquedos das crianças espalhados, o beijo sem gosto da esposa,
a torneira que goteja, e a maldita grama por fazer — isso é vida?
Não, a verdadeira vida é aquela das viagens e dos laptops,
onde as telas sedosas são os nossos espelhos da alma,
dos sapatos exageradamente lustrosos, que denunciam o assassino,
dos compromissos solitários, vôos turbulentos,
diretos ou com escalas, por nuvens melancólicas, até findar
numa pista de aterrisagem, onde alguém como você guarda o Graal.

On the Road

by John Updike

Those dutiful dogtrots down airport corridors
while gnawing at a Dunkin' Donuts cruller,
those hotel rooms where the TV remote
waits by the bed like a suicide pistol,
those hours in the air amid white shirts
whose wearers sleep-read through thick staid thrillers,
those breakfast buffets in prairie Marriotts-
such venues of transit grow dearer than home.

The tricycle in the hall, the wife's hasty kiss,
the dripping faucet and uncut lawn-this is life?
No, vita thrives via the road, in the laptop
whose silky screen shimmers like a dark queen's mirror,
in the polished shoe that signifies killer intent,
and in the solitary mission, a bumpy glide
down through the cloud cover to a single runway
at whose end a man just like you guards the Grail.

tuda - pap.el el.etrônico

Em associação com Casa Pyndahýba Editora

Ano I Número 2 - Fevereiro 2009

Tradução - Souzalopes


Dizem que "Finnegan's Wake" de James Joyce não passou de uma brincadeira do autor, e ele simplesmente vomitou palavras sem muito sentido e conexão, e se deliciou de rir ao receber elogio dos críticos, classificando a verborrágica novela de uma obra de arte da literatura contemporânea.

É difícil identificar uma trama em Finnegans. Só sabemos que é um tema de ascenção e queda... e muitos estudiosos defendem a forte analogia - não só ao nome da obra - a uma velha canção irlandesa, chamada "Tim Finnegan's Wake."

Publico aqui uma "transcriação livríssima" de Souzalopes desta canção, símbolo do ciclo universal da vida, com uma pequeníssima colaboração minha.

O Despertar de Tião Fuméca

1.
Na rua que anda, Fuméca morava
Pedreiro baiano, pra lá de estranho
Doido de pedra, a língia enrolava
Ganhava seu pão com pá e gadanho.
Tião era assim, ele só tinha um fraco:
Nasceu pra beber, mamava cachaça,
E só trabalhava enchedo o seu caco,
E já de manhã, mandava manguaça.

refrão:
Gandaia! Gandaia! Chama o parceiro,
E samba no chão, arrasta o sapato.
Eu falo a verdade, aqui no terreiro
Fuméca acorda e arma o barraco.

2.
Um dia ficou bebinho de souza
E caiu da escada, o corpo a dançar.
A testa no chão lascou feito louça.
E o levaram pra casa, para o velar.
Num limpo lençól, tão branco que alveja,
Ficou o coitado, morto na cama.
Deixaram nos pés barril de cerveja,
Na cabeceira, garrafa de cana.

refrão

3.
Vão os amigos o corpo velar
A velha pra todos serve o café:
Bolo e bolacha, cuscus e jabá.
Todos fumando, tomando seu mé.
Maria Moreira, gritando já chora:
"Quem foi que já viu defunto tão lindo?
Tião, seu danado, qual morte tem hora?"
Joana responde: "Calada! Saindo!"

refrão

4.
Teca de Tonho falou quase louca:
"Caralho Maria, chega de merda!"
Maria meteu-lhe a cinta na boca,
Jogou-a no chão, de pernas abertas.
Aí teve início o conflito geral -
Homem com homem, mulher com mulher.
Pra toda a cidade foi um carnaval,
Sangue no prato, em garfo e colher.

refrão

5.
Mirco Marrudo quis emendar o assunto
quando quase recebeu uma garrafada da marvada
desviado a tempo, a bixa deu direto no defunto
que além de morto tinha agora a roupa encharcada.
"Vixe! Reviveu!" exclamaram" "Olha como ele reviveu!"
E Fuméca pula da cama, meio que sem eira nem beira
garrafa numa mão, copo na outra, esclareceu:
Um brinde ao diabo... vim tomar a saideira!

refrão


Tim Finnegan's Wake

1.
Tim Finnegan lived on Walker Street
A gentleman, Irish, mighty odd;
He had a brogue both rich and sweet
And to rise in the world he carried a hod.
Now Tim had a sort of the tipplin' way
With a love of the whiskey he was born
And to help him on with his work each day
He'd a "drop of the cray-thur" every morn.

Chorus:
Whack fol the darn O, dance to your partner
Whirl the floor, your trotters shake;
Wasn't it the truth I told you
Lots of fun at Finnegan's wake!

2.
One mornin' Tim was feelin' full
His head was heavy which made him shake;
He fell from the ladder and broke his skull
And they carried him home his corpse to wake.
They rolled him up in a nice clean sheet
And laid him out upon the bed,
With a gallon of whiskey at his feet
And a barrel of porter at his head.

Chorus

3.
His friends assembled at the wake
And Mrs. Finnegan called for lunch,
First they brought in tea and cake
Then pipes, tobacco and whiskey punch.
Biddy O'Brien began to bawl
"Such a nice clean corpse, did you ever see?
"Aye Tim, mavourneen, why did you die?"
"Arragh, hold your gob" said Paddy McGee!

Chorus

4.
Then Maggie O'Connor took up the job
"O Biddy," says she, "You're wrong, I'm sure"
Biddy she gave her a belt in the gob
And left her sprawlin' on the floor.
And then the war did soon engage
'Twas woman to woman and man to man,
Shillelagh law was all the rage
And a row and eruption soon began.

Chorus

5.
Then Mickey Maloney ducked his head
When a noggin of whiskey flew at him,
It missed, and fallin' on the bed
The liquor scattered over Tim!
The corpse revives! See how he raises!
Timothy rising from the bed,
Says,"Whirl your whiskey around like blazes
Thanum an Dhul! D'ye think I'm dead?"

Chorus

tuda - pap.el el.etrônico

Em associação com Casa Pyndahýba Editora

Ano I Número 2 - Fevereiro 2009

Ilustração - Aristides Klafke



Tempest - Aristides Klafke, oil on canvas, 41" x 64", 2008

TUDA - pap.el el.etrônico

Em associação com Casa Pyndahýba Editora
Ano I Número 2 - Fevereiro 2009
Ilustração - José Geraldo de Barros Martins

tuda - pap.el el.etrônico

Em associação com Casa Pyndahýba Editora
Ano I Número 2 - Fevereiro 2009
Ilustração - Wladimir Augusto

Sem Título

TUDA - pap.el el.etrônico

Em associação com Casa Pyndahýba Editora
Ano I Número 2 - Fevereiro 2009
Foreign Words - Cruz & Souza

Cruz & Souza – Skull
by Eduardo Miranda




The leading figure of the Symbolist movement in Brazil, Cruz e Sousa was the son of freed slaves. His poetry weds the technical principles of French Symbolism to themes drawn from his social concerns and his own personal suffering. This poem describes a skull, emphasizing that we are all the same, and the death takes us all, either white or black.

Skull

I

Eyes which were eyes, two holes
Neither green nor blue, cold and dull...
Two dark eyeholes in a deep stroll
Skull!

II
Nose of delicate feature, insolent,
Shaped not to be lenient but cruel.
What's been done of the sweet scent?
Skull! Skull!!

III
Mouth of white teeth and lips
Kindly rounded and almost wailful.
Where the smile, the laugh, the quips?
Skull! Skull!! Skull!!!

Caveira

I
Olhos que foram olhos, dois buracos
Agora, fundos, no ondular da poeira...
Nem negros, nem azuis e nem opacos
Caveira!

II
Nariz de linhas, correções audazes,
De expressão aquilina e feiticeira,
Onde os olfatos virginais, falazes?!
Caveira! Caveira!!

III
Boca de dentes límpidos e finos,
De curva leve, original, ligeira,
Que é feito dos teus risos cristalinos!?
Caveira! Caveira!! Caveira!!!

tuda - pap.el el.etrônico

Em associação com Casa Pyndahýba Editora
Ano I Número 2 - Fevereiro 2009
A Educação Pela Pedra - João Cabral de Melo Neto

João Cabral de Melo Neto (1920-1999) inicia sua produção poética aos dezessete anos, mas é em 1942 que publica Pedra do Sono, sua primeira obra, com poemas compostos entre 1940 e 1941. É seguida por Os trê Mal-Amados (1943), O Engenheiro (1942-1945), Psicologia da Composição (1946-1947), O Cão sem Plumas (1949-1950), O Rio (1953), Paisagens com Figuras (1954-1955), Morte e Vida Severina (1954-1955), Uma Faca só Lâmina (1955), Quaderna (1956-1959), Dois Parlamentos (1958-1960), A Educação pela Pedra (1962-1965), Museu de Tudo (1966-1974), A Escola das Facas (1975-1980), Auto do Frade (1984), Agrestes (1981-1985), Crime na Calle Relator (1985-1987), Sevilha Andando (1987-1993), Andando Sevilha (1987-1989).

O título da coletânea A Educação pela Pedra indica a metodologia poética de Cabral: um processo contínuo de educação, onde o poema deve ser trabalhado de dentro pra fora, numa forma rigorosa e sistemática para obter consistência e resistência, tal qual a pedra. Ali não cabem metáforas, só a simetria entre a estrutura da linguagem e da realidade representada.

A seguir, o poema que dá título ao livro.



A Educação pela Pedra

Uma educação pela pedra: por lições;
para aprender da pedra, freqüentá-la;
captar sua voz inenfática, impessoal
(pela de dicção ela começa as aulas).
A lição de moral, sua resistência fria
ao que flui e a fluir, a ser maleada;
a de poética, sua carnadura concreta;
a de economia, seu adensar-se compacta:
lições de pedra (de fora para dentro,
cartilha muda), para quem soletrá-la.

*
* *

Outra educação pela pedra: no Sertão
(de dentro para fora, e pré-didática).
No Sertão a pedra não sabe lecionar,
e se lecionasse, não ensinaria nada;
lá não se aprende a pedra; lá a pedra,
uma pedra de nascença, entranha a alma.

Extraído do livro A Educação Pela Pedra (1962-1965)

TUDA - pap.el el.etrônico

Em associação com Casa Pyndahýba Editora
Ano I Número 2 - Fevereiro 2009
Palavras Enviadas

Avui, després de llegir-ho tot, he de començar de nou! Fa uns anys que m'estreteixo sobre est poema amb curaj... m'agraden els seus canvis de llenguatge i la seva ductilitat... em deixo anar tot provant i fent i desfent. Si us plau contacteu amb mi...
JD, por email

Interessante o trabalho do leitor Josep Daústin, que numa mistura sutil e gradual de castelhano e catalão por vezes nos deixa na dúvida quanto a que língua estamos lendo seu poema...


amante eteri - Josep Daústin

soy un pescador
de avanzada edad
y navego solo
solo por necesidad.

necesidad de estar
en total tranquilidad
pero sinto lo pesar
de diversa necesidad.

necessitat de tener
alguien para acaronar
pero tras de açò afecte
restes diversa cosa qu'estimar.

i si amar solo no és possible
i tota possibilitat és terrena
soy adoncs un amante eteri
en una eternitat serena.

Josep Daústin - Mataró, Maresme - Catalunya (2005)

TUDA - pap.el el.etrônico

Em associação com Casa Pyndahýba Editora
Ano I Número 2 - Fevereiro 2009
Palavras Enviadas

Foi Tudo Um Sonho - José Miranda Filho
"Enaltece as subidas da vida e esquece as descidas"
Pedro jamais imaginou que isso iria acontecer. Nunca passou pela sua cabeça tamanha tragédia. Ele chegou assim que o sol se pôs e a noite se aproximava. Já passava das 20 horas e o dia ainda estava claro.

- Esse horário de verão acaba confundindo a gente, dizia!..... não sei porque inventaram! Copiaram dos europeus. Dizem alguns técnicos que é necessário para a economia de eletricidade, já que o setor passa por grande dificuldade de geração por falta de investimento do governo, enquanto outros discordam, não oferecendo, porém, qualquer solução plausível; apenas discordam. Pedro era apenas um brasileiro semi-analfabeto, no meio de milhões, que não aceitam levar desaforos para casa. Era rude de natureza, coisa que aprendeu desde o tempo de criança nas caatingas do nordeste. Passou fome, por isso não aprendeu a sorrir e manifestar-se sobre coisa alguma.

- A gente só ouve que o Instituto Tal fez uma pesquisa disso e daquilo... eu nunca fui parado na rua para dar palpite ou opinar sobre nenhum assunto. Dizia sempre aos amigos, quando ficava sabendo o resultado de pesquisas de opinião sobre eleições.

- E olha que eu ando pelas ruas, repetia. O horário de verão é deveras inconseqüente para a hora de deitar e levantar. A hora de acordar é ainda escura, e a hora de deitar ainda é clara. Agora mesmo ainda é dia e já passa das vinte horas.

Nesta época de verão as chuvas em forma de tempestades são violentas e perigosas. Elas trazem sofrimento àqueles moradores que vivem às margens ribeirinhas de córregos e lagos. É o caso do Pedro da Carroça, Pedro Ferreira da Silva Porto, esse o seu verdadeiro nome, quando aqui desembarcou de um ônibus vindo de Pernambuco, em janeiro de 1950. Assim que chegou deu sorte de conseguir emprego de auxiliar de pedreiro (meia cuié), como dizem na gíria. Permaneceu lá por 10 anos. Seu salário não era suficiente para suprir as necessidades da família composta por mulher e quatro filhos, ainda menores. Nada sobrava. Perdeu o emprego quando começou fazer exigências para aumento de salário, insuflado por companheiros do Sindicato da Construção Civil. Desde então só penou! Pastou! Emprego nem pensar! Daí em diante, sem eira e nem beira começou fazer parte da parcela dos excluídos da sociedade. Seu sonho desmoronou! Foi morar na favela, único lugar em que pode acomodar a mulher e os filhos. Pedro não tinha endereço...A rua aonde ele morava não tinha nome. O barraco de Pedro não tinha número. Ele não existia. Não tinha referência. Não tinha conta em banco....não tinha conta de água, de luz, de telefone...aliás a luz elétrica dele e dos vizinhos chegava aos barracos através de gambiarra que os moradores da favela costumam fazer. É perigoso, mas não há alternativa. Todos precisam da luz. "Faça-se a luz e a luz se fez, assim disse Deus na formação do mundo". Alguns moradores da Favela do Abrigado não conseguem nem ter o básico dentro de casa: arroz, feijão, carne... quanto mais pagar conta de luz. Pedro servia apenas para figurar nas estatísticas dos mais pobres.

Quando Pedro, ainda jovem na pequena cidade do interior de Pernambuco, Cabrobó, tinha alguma preferência por partidos políticos de esquerda, mormente o PCB, apesar de saber que a esquerda no Brasil só existe quando seus líderes estão presos, momento em que fazem planos de união e dizem que ao saírem vão se aliar e formar uma grande partido de esquerda. Balela! Quando ganham a liberdade cada um vai para seu canto e forma seu próprio bloco. Pedro não imaginava que tudo isso fosse acontecer! Ele morava no décimo barraco da Rua sem nome, na Favela dos Abrigados. Esse era o nome do bairro, se é que poderia chamar aquilo de bairro. O endereço servia apenas de orientação para seus vizinhos e amigos não confundirem um barraco com o outro. Isso não provava sua cidadania porque não tinha cadastro na Prefeitura. A rua não existia nos cadastros dos órgãos públicos. Seu barraco tinha um quarto onde dormiam seus quatro filhos, mais ele e a mulher, cozinha pequena e um banheiro também de dimensões minúsculas. Era tudo o que tinha como bem patrimonial. A construção do barraco foi possível graças à ajuda humanitária de seus vizinhos. Cada um trouxe um pedaço de madeira compensado, às vezes de origem clandestina, remanescentes de obras dos Poderes Públicos, algumas delas surrupiadas na calada da noite - roubar do governo não é crime, dizia ele. Aliás o governo rouba a gente todo dia e ninguém faz nada!

E tudo isso era motivo para seu mau humor. Vivia triste e infeliz da vida. Queria apenas ser um cidadão, mesmo carregando sua carroça de papelão, que catava pelas ruas de São Paulo, pesada e desconfortável. Desejava apenas ter o suficiente para comer três vezes ao dia como prometera o Presidente da República durante a campanha presidencial.

Não tinha emprego fixo e nem renda familiar. Vivia de bicos que fazia aqui e acolá, quando conseguia. Quando não arranjava alguma coisa para fazer, como pintura, serviço de pedreiro ou jardinagem, se virava catando papelão e latinhas de refrigerantes e cervejas pelas ruas. Sua vida, assim como a de tantos outros brasileiros, era dramática, um desafio à dignidade humana. Ele fintava todos os percalços, desafiava as dificuldades e vencia todas as incertezas da vida com dignidade e coragem, atributos que nunca lhe faltaram.

Naquela noite, ao chegar em casa, após atravessar a ponte de madeira que liga seu barraco à rua, tropeçou num pedaço de madeira exposto e quase caiu no córrego que circunda a favela e sobre o qual estão erigidas dezenas de palafitas. Não fosse a pronta ação de um vizinho, fatalmente teria caído naquelas águas podres e poluídas.

Ao chegar ao barraco os filhos estavam a lhe esperar juntamente com a mulher Elvira, grávida do quinto filho. Não trazia nada além de um frango que havia ganhado ao ajudar descarregar um caminhão num frigorífico. Ao menos o jantar estava garantido.

Naquela noite foi deitar contemplando o brilho resplandecente das estrelas através das frestas do barraco. Dormiu feliz. Sonhou. O clarão da lua incandescia seu barraco. De repente, viu-se sentado à mesa farta de comida ao lado da mulher e dos filhos, numa noite de natal. Dois castiçais de 3 velas cada um fazia parte da decoração da mesa. Suas luzes eram fortes e incessantes.

- Que ceia! Que noite! Que fartura! Balbuciava feliz! O sono havia lhe dominado totalmente. O cansaço de tanto puxar a carroça foi seu inimigo crucial. As velas acesas que via sobre a mesa, eram na verdade as chamas do fogo insano que consumiu o barraco e junto com ele toda a família.

Quando acordou, viu-se deitado numa cama, rodeado de enfermeiras que lhes apalpavam o corpo queimado e dolorido. Perguntou pela mulher e filhos. Ninguém lhe respondeu. Também não lhe disseram o motivo porque estava ali naquele hospital.

Assim, Pedro, sob efeito dos calmantes, voltou a dormir.

São Caetano do Sul, São Paulo - Brasil (Natal de 2006)

Autores

Ademir Demarchi Adília Lopes Adriana Pessolato Afobório Agustín Ubeda Alan Kenny Alberto Bresciani Alberto da Cunha Melo Aldo Votto Alejandra Pizarnik Alessandro Miranda Alexei Bueno Alexis Pomerantzeff Ali Ahmad Said Asbar Almandrade Álvaro de Campos Alyssa Monks Amadeu Ferreira Ana Cristina Cesar Ana Paula Guimarães Andrew Simpson Anthony Thwaite Antonio Brasileiro Antonio Cisneros Antonio Gamoneda António Nobre Antonio Romane Ari Cândido Ari Candido Fernandes Aristides Klafke Arnaldo Xavier Atsuro Riley Aurélio de Oliveira Banksy Bertolt Brecht Bo Mathorne Bob Dylan Bruno Tolentino Calabrone Camila Alencar Cândido Rolim Carey Clarke Carla Andrade Carlos Barbosa Carlos Bonfá Carlos Drummond de Andrade Carlos Eugênio Junqueira Ayres Carlos Pena Filho Carol Ann Duffy Carolyn Crawford Cassiano Ricardo Cecília Meireles Celso de Alencar Cesar Cruz Charles Bukowski Chico Buarque de Hollanda Chico Buarque de Hollanda and Paulo Pontes Claudia Roquette-Pinto Constantine Cavafy Conteúdos Cornelius Eady Cruz e Souza Cyro de Mattos Dantas Mota David Butler Décio Pignatari Denise Freitas Desmond O’Grady Dimitris Lyacos Dino Valls Dom e Ravel Donald Teskey Donizete Galvão Donna Acheson-Juillet Dorival Fontana Dylan Thomas Edgar Allan Poe Edson Bueno de Camargo Eduardo Miranda Eduardo Sarno Eduvier Fuentes Fernández Elaine Garvey Éle Semog Elizabeth Bishop Enio Squeff Ernest Descals Eugénio de Andrade Evgen Bavcar Fernando Pessoa Fernando Portela Ferreira Gullar Firmino Rocha Francisco Niebro George Callaghan George Garrett Gey Espinheira Gherashim Luca Gil Scott-Heron Gilberto Nable Glauco Vilas Boas Gonçalves Dias Grant Wood Gregório de Matos Guilherme de Almeida Hamilton Faria Henri Matisse Henrique Augusto Chaudon Henry Vaughan Hilda Hilst Hughie O'Donoghue Husam Rabahia Ian Iqbal Rashid Ingeborg Bachmann Issa Touma Italo Ramos Itamar Assumpção Iulian Boldea Ivan Donn Carswell Ivan Justen Santana Ivan Titor Ivana Arruda Leite Izacyl Guimarães Ferreira Jacek Yerka Jack Butler Yeats Jackson Pollock Jacob Pinheiro Goldberg Jacques Roumain James Joyce James Merril James Wright Jan Nepomuk Neruda Jason Yarmosky Jeanette Rozsas Jim McDonald Joan Maragall i Gorina João Cabral de Melo Neto João Guimarães Rosa João Werner Joaquim Cardozo Joe Fenton John Doherty John Steuart Curry John Updike John Yeats José Carlos de Souza José de Almada-Negreiros José Geraldo de Barros Martins José Inácio Vieira de Melo José Miranda Filho José Paulo Paes José Ricardo Nunes José Saramago Josep Daústin Junqueira Ayres Kerry Shawn Keys Konstanty Ildefons Galczynski Kurt Weill Lêdo Ivo Léon Laleau Leonardo André Elwing Goldberg Lluís Llach I Grande Lou Reed Luis Serguilha Luiz Otávio Oliani Luiz Roberto Guedes Luther Lebtag Magnhild Opdol Manoel de Barros Marçal Aquino Márcio-André Marco Rheis Marcos Rey Mari Khnkoyan Maria do Rosário Pedreira Mariângela de Almeida Marina Abramović Marina Alexiou Mario Benedetti Mário Chamie Mário de Andrade Mário de Sá-Carneiro Mário Faustino Mario Quintana Marly Agostini Franzin Marta Penter Masaoka Shiki Maser Matilde Damele Matthias Johannessen Michael Palmer Miguel Torga Mira Schendel Moacir Amâncio Mr. Mead Murilo Carvalho Murilo Mendes Nadir Afonso Nâzım Hikmet Nuala Ní Chonchuír Nuala Ní Dhomhnaill Odd Nerdrum Orides Fontela Orlando Gibbons Orlando Teruz Oscar Niemeyer Osip Mandelstam Oswald de Andrade Pablo Neruda Pablo Picasso Pádraig Mac Piarais Patativa do Assaré Paul Funge Paul Henry Paulo Afonso da Silva Pinto Paulo Cancela de Abreu Paulo Henriques Britto Paulo Leminski Pedro Du Bois Pedro Lemebel Pete Doherty Petya Stoykova Dubarova Pink Floyd Plínio de Aguiar Qi Baishi Rafael Mantovani Ragnar Lagerbald Raquel Naveira Raul Bopp Regina Alonso Régis Bonvicino Renato Borgomoni Renato de Almeida Martins Renato Rezende Ricardo Portugal Ricardo Primo Portugal Ronald Augusto Roniwalter Jatobá Rowena Dring Rui Carvalho Homem Rui Lage Ruy Belo Ruy Espinheira Filho Ruzbihan al-Shirazi Salvado Dalí Sandra Ciccone Ginez Santiago de Novais Saúl Dias Scott Scheidly Seamus Heaney Sebastià Alzamora Sebastian Guerrini Shahram Karimi Shorsha Sullivan Sigitas Parulskis Sílvio Ferreira Leite Silvio Fiorani Sílvio Fiorani Smokey Robinson Sohrab Sepehri Sophia de Mello Breyner Andresen Souzalopes Susana Thénon Susie Hervatin Suzana Cano The Yes Men Thom Gunn Tim Burton Tomasz Bagiński Torquato Neto Túlia Lopes Vagner Barbosa Val Byrne Valdomiro Santana Vera Lúcia de Oliveira Vicente Werner y Sanchez Victor Giudice Vieira da Silva Vinícius de Moraes W. B. Yeats W.H. Auden Walt Disney Walter Frederick Osborne William Kentridge Willian Blake Wladimir Augusto Yves Bonnefoy Zdzisław Beksiński Zé Rodrix