Definição

... da totalidade das coisas e dos seres, do total das coisas e dos seres, do que é objeto de todo o discurso, da totalidade das coisas concretas ou abstratas, sem faltar nenhuma, de todos os atributos e qualidades, de todas as pessoas, de todo mundo, do que é importante, do que é essencial, do que realmente conta...
Em associação com Casa Pyndahýba Editora
Ano VI Número 63 - Março 2014

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Editorial

Judith Beheading Holofernes ~ Caravaggio

“Je suis desja d'amour tanné
Ma tres doulce Valentinée...”

~ Charles d'Orléans, Rondeau VI, lignes 1–2


TUDA Fevereiro ~ Fevereiro TUDA!

Diz a lenda que o imperador romano Cláudio II, durante seu governo, proibiu a realização de casamentos por acreditar que se os jovens não tivessem família se alistariam no exército com maior facilidade - faz sentido: cabeça vazia morada do demônio; no caso, morada do Imperador. Valentim foi o bispo que continuou a celebrar casamentos às escondidas, pelas costas do imperador. Desmascarado, Valentim foi preso e condenado à morte. Na prisão certa vez recebeu a visita de Astérias, a filha cega do carcereiro. Os dois acabaram se apaixonando e a jovem milagrosamente recuperou a visão!

Happy Valentine’s Day ~ Manuela Valenti
Embora as tradições folclóricas européias de São Valentim tenham sido corrompidas por um certo romantismo americanizado (esses americanos!), ainda o associam com o advento da primavera, e há lugares onde é celebrado como o dia em que começa o trabalho nas vinhas e nos campos, e essa associação com o Dia dos Namorados é relativamente recente; tradicionalmente era 12 de Março (dia de São Gregório) ou 22 de Fevereiro (dia de São Vicente). E Santo Antônio, o patrono do amor, é comemorado em 13 de Junho...

Valentim foi decapitado em 14 de Fevereiro de 270.

É isso aí companheiros & companheiras, na velha e suja LabUTA do dia a dia, cada vez mais suja, ainda mais agora que foi revelado o que este espaço já notara: manifestação é coisa pra inglês ver! E eles estão chegando!! Junto com franceses, italianos, espanhóis, e também americanos, os donos do quintal! A vida imita a arte, como já dizia o poeta. Protestar contra a Copa seria não consumí-la! Mas aí já seria ser sério demais, não é mesmo? Seria pedir demais, afinal, quem vive sem futebol?!? Então só nos resta metermos na cara nossa máscara V de Vendeta e sairmos nas ruas a espevitar nossas ideologias cheias de boas-intenções - algumas bem sinceras - e assim fazer notícia. E no fim do dia, entrar num ônibus ou metrô, pagar a taxa abusiva que protestávamos, chegar em casa e sentar passivamente frente à TV - o futebol começa logo após a novela! - e tomarmos uma para relaxar: Brahma ou Antarctica ou Bohemia ou Skol ou Stella Artois... e se não é álcool o seu babado, Guaraná ou Soda ou Sukita ou H2OH ou Pepsi ou Ice Tea ou Gatorade... dá tudo na mesma! E coca-cola também pode!

QG de TUDA, Fevereiro 2014
Já se foi dito que a única arma eficiente contra o capital é o capital: quanto mais ricos, mais se importam com seus bens, os somíticos,  cauilas e forretas; até que esse apego excessivo ao dinheiro se torne uma obsessão e eclodam em ridicularias, em profusões, bradando suas prodigalidades sem dadivosidade!

O pão duro do pobre sempre será menos duro que o do pão-duro. Só eles é que não percebem...

Asyno Eduardo Miranda
o (auto-proclamado) editor deste porto semisseguro da jlha do Eire
oje, dezº qvjmº dia do segvmº mez
d este Anno Domini de MMXIV

Dívida Interna

Trapped Love ~ Y. G. Lamprakis
Editor
Eduardo Miranda

Capa
José Geraldo de Barros Martins

Blogagem
Eduardo Miranda

Revisão
dos autores

Participam desta edição:
Alex Florschutz, Andy Council, Aristides Klafke, Arnaldo Xavier, Bethany Helzer, Caravaggio, Cesar Cruz, Charles d'Orléans, Dorival Fontana, Eduardo Miranda, Eric Zener, Hamilton Faria, Jan van Eyck, Jeff Christensen, José Geraldo de Barros Martins, José Miranda Filho, Kathryn Renee, Luiz Gama, Manuela Valenti, Maria do Rosário Pedreira, Marina Alexiou, Nâzim Hikmet, Nicholas Petrucci, Paul Vogeler, Pedro Du Bois, Piet Mondrian, Pieter Janssens Elinga, Plínio de Aguiar, Roberto Bolaño, Smith & Foulkes, Tim Burton, Y. G. Lamprakis

E-mail
tuda.papel.eletronico@gmail.com

Poesia - Arnaldo Xavier

Trafalgar Square, 1939-43 ~ Piet Mondrian

subsenhor            Sol lhes sombras      ferramentas de esculpir
escuridão   paradoxal luz    lua bala prateada nó coração da noite
O horizontal jamais se deitará com o vertical     Porque do animal
singularíssimo que és       não sairás

[ in Lud-Lud, Casa Pyndahýba Editora, São Paulo, 1998 ]

Poesia - Aristides Klafke

Tank Human Heart ~ Andy Council
12

Num forno
Meu coração
De barro
- que pão!
               Meu quente coração
Meu coração
Numa cascata
De sangue
- que vinho!
               Meu sedento coração
Meu coração
Na tua mão
Meu amor
- que corte!
               Meu cicatrizado coração

[ in Quebrada, inédito ]

Poesia - Plínio de Aguiar

Divine Source - Fire ~  Alex Florschutz
Como Amei Você Minha Menina Na Surdina
da Aleivosia Montada no Segredo


hotel de sangue
hímen andróide Blade Runner,
unha de veludo.

o jornal morreu sobre o lençol
manchado
o gerente agarrou o cheque.

[in Lira Rústica, Booklink, 2005]

Poesia - Hamilton Faria

Masks ~ Kathryn Renee
Máscara


Dá-me uma máscara, Pai,
Para suportar a dor do humano
E ainda rir por trás dos panos

Poesia - Dorival Fontana

Autumn Abandonment ~ photo by Bethany Helzer
Quintais

A casa continua viva,
na rua desabitada
sem número.
As paredes rústicas
cercam sonhos,
assentam tijolos nus.
A escada antiga
descende melancolia,
já não conduz.
Varal hasteando farrapos
goteja ferrugem
no chão de cimento cru.
Aranhas de jardim
tecem vagarosos fios
entre solitários canteiros.
A panela suspira aroma caseiro,
sons em preto em branco,
o bairro de uma rua só.
A mobília respira poeira,
o mofo nas veias...
pulsa coração de tábuas e areia.
Nas fissuras do passeio
formigas transitam invisíveis...
todas pelo formigueiro.
As crianças correm pela casa,
o menino chuta a bola,
o cachorro atrás do rabo.
Do assoalho rosa peroba
passos risos vozes
ecoam a lembrança.
A janela espia a rua.
A mãe espreita os filhos.
Deus vigia a todos.

Poesia - Pedro Du Bois

Contemner ~ Jeff Christensen
Conviver

Convivo na desconfiança
de ser espionado
sem motivo aparente

ser vigiado diariamente
sem motivo aparente
ser preso diariamente
sem qualquer motivo

na ideia de ser denunciado
pronunciado
tipificado
sentenciado
(todos os dias)
sem aparentar motivos

convivo na prestação da pena
aparente em que desconfio
de cada dia atípico.

Poesia - Marina Alexiou

Sleeping Hermaphroditus
Imagen enviada pela autora
Narciso Hermafrodita

O que se segue é indefinido pelas ondas
num sono profundo do ser
que se sonha no giro do caleidoscópio
que é o seu coração.
Quem poderá pressentir os habitantes
dessa dupla dimensão imersa em seu íntimo?
O sorriso em seus lábios juvenis
é indício de uma experiência de entregas e dúvidas
inúmeras vezes revivida,
enquanto seus olhos miram esse horizonte
encoberto e sem sol.
É terno este ser viajante do não-ser.
Sua silhueta é breve, como breves são
os momentos de vigília.
Qual um Narciso, dorme mirando o fundo
do lago da sua essência primaveril.
Que logo alcançará o outono das folhas
do prazer.
Que caem copiosamente,
através das lágrimas do seu despertar.

Poesia - Eduardo Miranda


necr(o)-

mulher pálida
sobre pedra gélida
friíssimas – mulher e pedra

homem apático
prostrado frente à pedra
duríssimos – membro, mulher e pedra

e mesmo já morta – ela –
atrás das cortinas fúnebres
seu necrofastígio – (d)ele –
se esmoece em gestos vazios
conforme a melodia.

Conto - José Geraldo de Barros Martins

Ilustração de José Geraldo de Barros Martins
Zapeando O Controle Remoto Em Uma Sexta-Feira De Carnaval

Segundo o dito popular, a mente feminina é composta de uma caixa na qual estão misturados vários assuntos: família, sexo, trabalho, novelas, manutenção da casa, vestuário, etc... enquanto que a mente masculina é um conjunto de compartimentos, um para o futebol, outro para a família, outro para o sexo, e assim por diante, inclusive um que é vazio... é neste que o cérebro masculino está sintonizado quando muda repentinamente (“zapeia”) o controle remoto da televisão...

Naquele sexta-feira de carnaval, Josias Germano estava zapeando em frente a seu aparelho de tevê enquanto sua fiel escudeira Marília Olávia, dormia sob a brisa de um silencioso ventilador numa escaldante noite tropical...

O nosso protagonista deparou-se com vários desfiles das escola de samba e enquanto mudava de canal ficou pensando que tais desfiles foram instituídos durante a ditadura do Estado Novo, inspirados em desfiles militares, como forma de introduzir um caráter militarizante no inconsciente coletivo do pobre povo de Pindorama... é claro que Josias Germano não era tolo a ponto de crer que o samba era fruto do Estado Novo, como alguns pseudo-historiadores querem nos fazer acreditar (*)...

Josias Germano bebia cerveja puro malte e comia frios sortidos... aprendera esta lição lendo Antônio Maria:

“No Carnaval prometi a mim mesmo que não sairia de casa. Fiz uma reserva de frios e cervejas (...) Na terça feira de manhã tive que refazer o estoque de cervejas na geladeira. Também os frios, que não se acabaram, mas empalideceram(**).

Então o nosso protagonista resolveu mudar de canal mais uma vez, não aguentava mais aquela coisa de carnaval, “antigamente fazia algum sentido, mas a coisa começou a ficar muito igual... muito globeleza... antes eu me interessava pelos desfiles do Salgueiro, da Portela, da Mangueira, do Vai-Vai... agora não tenho paciência... com a Copa do Mundo está acontecendo a mesma coisa... antigamente eu ficava esperando sair as tabelinhas da copa, fazia simulações, prognósticos... era uma alegria a Copa do Mundo... depois a coisa foi se pasteurizando, ganhando importância e chatice... agora está uma babaquice que não tem tamanho... até na cor dos uniformes resolverm intervir... imagine num Brasil X Itália, os canarinhos terão que jogar com o calção branco e os italianos com o calção azul, ou seja totalmente descaracterizados (***)...

Por uma incrível coincidência,. Quando ele mudou de canal apareceu um programa sobre a História de Todas as Copas, mais precisamente sobre a Copa de 1990, então ele instantâneamente mudou de canal “se fosse uma outra Copa eu até poderia assistir, mas esta jamais”... o Brasil sendo eliminado pela Argentina, a mediocridade de Lazaroni, a seleção da era Collor de Melo...

Porém na mudança de canal apareceu uma luta de UFC... “se fosse uma boa luta de boxe, eu assistiria com prazer... mas esta coisa não dá pra assistir.. é por isso que o boxe americano está decadente... por causa desta bobagem de UFC... os atuais campeões de pesos pesados (nas várias associações) são dois irmãos ucranianos... nas olimpíadas de Londres o boxe olímpico americano fez o maior palelão... tudo culpa desta onda de UFC”

Então passou por inúmeros programas: alienígenas do passado, caminhoneiros percorrendo geleiras canadenses, surfistas fazendo programa de culinária, etc.. até descobrir que numa tevê alternativa estava passando “Der Leone Have Sept Cabeças” que Glauber Rocha filmou no Congo em 1970...

Josias Germano então lembrou-se das teorias do filósofo Vilém Flussler, a respeito da pré-história, história e pós-história...a primeira era foi dominada pela imagem... a segunda pela escrita... a terceira (que se iniciou no final do século XIX com a invenção da fotografia) está sendo dominada pela imagem codificada por meios técnológicos (fotografia, cinema, internet), ou seja, não pelas puras imagens icônicas do passado, mas pelas imagens transcritas pos meios submetidos a ciência, porém sem o aparato lógico da linguagem escrita...

“Esta linguagem estará fadada a se desligar das amarras da racionalidade...não mais a linguagem lógica, mas a linguagem do inconsciente... a linguagem do futuro... feita somente de imagens puras, sem roteiros, diálogos, etc...”

O filme estava na metade, ele reviu até o final... então ele zapeou novamente... de novo uma imagem de carnaval... “Quem pula é cabrito!!!” pensou enquanto desligava a tevê...



(*) Esta história de samba ser fruto do Estado Novo getulista é uma enorme asneira... só como exemplo, confrontando a saga de Getúlio com a biografia do maior sambista de todos os tempos iremos ver que ”Com que Roupa?” de Noel Rosa foi composta em 1929, uma ano antes da Revolução de 30 e que o Sambista da Vila compôs suas 259 canções antes da instalação da ditadura getulista em 1937...

(**) A crônica da qual tirei esta citação foi escrita em 13/02/1964, precisamente a 50 anos antes deste mini-conto que foi escrito em 13/02/2014

(***) Pela nova regra da obtusa instituição, uma seleção não poderá jogar com peças da mesma cor da camisa do adversário... isto somado a recente determinação na alternância entre o claro e o escura de calções e meiões (já incorporada no futebol brasileiro), vai descaracterizar totalmente os jogos da competição.

Conto - Cesar Cruz

http://www.cafepress.fr
Uma Borracharia Séria

Dia desses o pneu do meu carro furou em plena Avenida Radial Leste, ao meio-dia. Debaixo desse sol de 40 graus que anda fazendo aqui em São Paulo, você faz ideia do sufoco que eu passei, agachado ao lado do carro na pista central, com os caminhões bufando quente, rente às minhas costas. De calça, camisa e sapato, troquei sozinho o pneu, já que nenhum gentil cavalheiro pareceu ter interesse em me ajudar... Mundo injusto.

Só de vingança, fiquei rodando uns bons 10 dias com o estepe e o pneu furado no porta-malas. Hoje cedo, finalmente, encostei numa borracharia.

Dizem que há coisas que só o Brasil tem, entre elas o escritório de despachante e as Casas Pernambucanas. E a borracharia, é claro. A borracharia é que nem a caipirinha, uma instituição nacional! Você é capaz de imaginar uma borracharia na Holanda, com uns borracheiros holandeses, vestindo aquele macacão cinza? Esquece. Borracharia é coisa brasilis!

Daí foi só parar o carro junto ao meio fio e o borracheiro, calado como todo o bom borracheiro, já foi vendo qual era o pneu furado, erguendo meu carro naquele macaco que todo mundo conhece, girando a chave estrela pra soltar as porcas, abrindo o porta-malas e tirando o furado, tudo isso com um cigarrinho equilibrado no beiço.

Quando dei conta eu já estava dentro da borracharia vendo o cara arrancar, na base da marretada, o meu pobre pneu da roda de ferro. Cuidando pra não encostar em nada, fui vendo as coisas... Atrás de mim, uma pilha de pneus meia-vida e umas calotas penduradas nas paredes encardidas; ali o compressor de ar, mais pra cá uma cadeira de plástico (que um dia foi branca) com uns jornais desmantelados em cima, uma pia minúsculas e imunda, com um pote de pasta desengraxante com cheiro de querosene ao lado da torneira e, é claro, a clássica banheira de borracharia no canto, aquele modelo retrô que só Deus sabe onde os caras acham pra comprar. Mas, pera lá... Um item importante estava faltando!

– Ô, amigo, cadê as mulheres? – perguntei.

– Que mulheres? – ele devolveu, já repondo o pneu consertado no devido lugar.

– Ora, as mulheres peladas!

– Ah, aqui num pode não, que o seu Isaac é crente.

– Que absurdo! Me chame o seu Isaac que eu quero tirar satisfações!

– Foi no banco...

Apesar de contrariado, paguei; mas saí desconfiado de que o pneu pudesse não ter ficado bem consertado. Afinal, uma borracharia que não tenha o serviço fiscalizado por Monique Evans, Magda Cotrofe, Maria Zilda, Luiza Brunet e, quem sabe, pelos olhos penetrantes de uma Lúcia Veríssimo, definitivamente não pode ser uma borracharia séria.

Conto - José Miranda Filho

Paul Vogeler ~ Resurrection, 2011
Encontro de Amigos - Parte 27

Dublin, Irlanda, Outubro de 1984

Meu caro Fred.

Escrevo-te esta carta para dizer-te que estou bem de saúde junto com Josefina que tem sido uma companheira pertinente e te manda um beijo.

Neste momento, do quarto do apartamento ao lado do Parque Fênix, que tu tanto conheces e que juntos, diariamente, percorríamos seu vasto jardim, sinto-me triste e depressivo. Não por faltar-me qualquer bem material, mas o espiritual: o amor, o convívio dos amigos, e do Brasil.

Não sei quando estarei de volta. Esperarei melhor oportunidade para regressar. Sei que uns tantos amigos e companheiros já empreenderam a viagem de volta. A Lei da Anistia ainda é obscura para o meu caso. Uma coisa é ser refém de si próprio, outra é subjugar o poder de quem manda. Sinto-me ainda refém do medo, do passado e do futuro que me espera aí, que não sei como será. Apesar de viver razoavelmente bem aqui em Dublin, ter autorização de locomover-me para qualquer lugar do país, sinto-me um tanto prisioneiro de meus ideais, pois como sabes, não era isso que almejávamos e nem pretendíamos um dia acontecer. Tudo foi por acaso, veio de repente, sem critérios e quaisquer escrúpulos e sem qualquer motivo. Simples vaidade de um grupo de generais radicados na ideologia tacanha do formalismo imperial. Confio na justiça, na ordem e na luta corajosa do povo brasileiro para a restauração da lei e da democracia, que em breve libertará esta Pátria do jugo daqueles que a dominaram injusta e covardemente. O jugo lusitano de antanho já se expurgou definitivamente do seio da nossa Pátria. Não existem mais razões, por mais idealistas que sejam, capazes de impedir o avanço democrático do País.

Na solidão das noites que me parecem longas, ao lado de Josefina que me conforta e supera minhas ansiedades, sinto o burburinho dos transeuntes que passeiam pelos caminhos tortuosos do parque, ignorando totalmente o problema de milhares de pessoas que como eu, absorve-os e recolhe-os no intimo da alma. Eles não têm nada a ver com isso, não é verdade? Entretanto, amigo, a vida foi nos dada para ser vivida, não para lastimá-la. Se assim fosse, Deus não a nos teria dado. Fico feliz que estejas bem ao lado de Joelma e das crianças, se ainda posso assim chamá-las. Também me conforta o fato de saber que meus filhos Edward e Alex, continuam com suas atividades em plena ascensão, e estão bem de saúde e de finanças. Esperançoso de muito em breve dar-te o meu abraço pessoalmente, despeço-me, desejando a ti e aos teus os mais sinceros votos de estima e apreço.

Teu amigo de sempre e para sempre.

Jack.


Esta carta, dentre tantas outras correspondências encontradas na biblioteca do Doutor Jackson, foi endereçada ao amigo Frederico Moreira da Silva, ex-Ministro de Relações Exteriores do Brasil nos idos de 1969, enquanto aguardava melhor oportunidade de regressar ao Brasil, beneficiado pela Lei da Anistia. Alguns meses após ele desembarcava em São Paulo, junto com a esposa e seu fiel escudeiro, Robson Silvério, secretário particular e homem de sua estrita confiança.

Conto - Eduardo Miranda

Reading Woman ~ Pieter Janssens Elinga
Lia, a Leitora

Ela lia. Lia lia livros, revistas, gibis, panfletos, bulas… lia de tudo. E em suas leituras, todas muito concienciosas, filtrava bem os assuntos que lhe interessavam e retia… retia como ninguém o que lia, mas não lia nada em computadores. Tinha uma aversão herdade de seu pai por aparelhos televisivos. Por extensão, mantinha-se afastado de computadores também… pura convição!

Por ler tanto, naturalmente era uma estranha. Não que fosse estranha necessariamente, mas para os padrões dos outros seres humanos – sim, era um ser humano. Não se encaixava nos padrões dos outros da mesma espécie… e quando chacoteavam-lhe, descarregava a classificação biológica do ser humano da vida, numa abordagem sistemática-científica, dizendo que sim, era humana, pois pertencia ao domínio eukaryota, ao reino animalia, subreino eumetazoa, divisão chordata, subdivisão vertebrata, classe mammalia, subclasse theria, infraclasse eutheria, ordem primates, subordem haplorrhini, infraordem simiiformes, superfamília hominoidea, família hominidae, subfamília homininae, gênero homo, espécie homo sapiens, subespécie homo sapiens sapiens… enquanto os outros, reles seres, ao invés de tomarem o rumo da chordata, desviavam-se pela divisão anthropoda, conhecida pela mosca de fruta, ou antes ainda, tomavam o rumo do reino plantae e se enveredavam pela divisão da magnoliophyta, a das ervilhas!

Momentos assim eram extremos, é verdade, e raramente aconteciam. Seu dia-a-dia era tranquilo, sem muito contato humano – a não ser no trabalho. Bibliotecária, perguntavam-lhe sobre livros, Lia respondia sobre livros. Outras perguntas, tais como “ Olá, como vai?”, “Você já almoçou?”, ou “Como foi o seu final de semana?”, com o tempo deixaram de ser indagadas pelos colegas e usuários da biblioteca, pois logo perceberam que, entre gaguejos e olhares dissimulados, Lia não conseguia responder sem se constranger até os dentes!

Lia ia para o trabalho à pé. Mesmo caminhando, Lia lia. Tropeçava eventualmente aqui ou ali, mas via de regra conhecia bem as cinco quadras que separavam seu quarto alugado e a biblioteca. Quando almoçava, Lia almoçava lendo. Sempre ia ao banheiro com um livro, e quando não estava atendendo alguém, lia.

Certo dia, pega de surpresa pelo final de um livro enquanto caminhava, desesperou-se em não ter o que ler e parou na banca de jornal. Comprou o jornal do dia, onde entre tantas baboseiras, na seção de tecnologia anunciavam o fim do livro impresso. A reportagem preconizava que estávamos a um passo do livro eletrônico perfeito! Entre vários modelos – uns com telas de LCD, outros com tintas eletrônicas que não emitem luz, outros ainda que simulavam as viradas de páginas como nos livros de verdade – o artigo dizia que seria uma questão de meses para que o livro finalmente morresse!

Lia, que na sua curiosidade e amor pelos livros já os experimentara em todas as suas formas e fases: as pinturas rupestres, o codex, os manuscritos dos monges copistas, os primeiros registros em papel, as primeiras cópias impressa por Gutenberg... mas agora teria que sucumbir à tecnologia digital?!? Não! Nada poderia lhe impressionar mais!

Lia que lia, matou-se.

Tradução - Eduardo Miranda

Bursa cezaevinde - Kontrplak üzerine Y.B, 1946 ~ Nâzim Hikmet
Nâzim Hikmet


A neve bloqueava o caminho
e você não estava lá
sentado com minhas anotações
de olhos fechados
imaginei seu rosto.

Não haviam barcos
tampouco aviões
e você não estava lá
eu me apoiava na parede
e falava, falava, falava
sem sair uma só palavra.

Você não estava lá
eu te toquei com minhas mãos
minhas mãos cobriam meu rosto.

Kar kesti yolu
sen yoktun
oturdum karşına dizüstü
seyrettim yüzünü
gözlerim kapalı

Gemiler geçmiyor
uçaklar uçmuyor
sen yoktun
karşında duvara dayanmıştım
konuştum, konuştum, konuştum
ağzımı açmadım

Sen yoktun
ellerimle dokundum sana
ellerim yüzümdeydi.

Tradução - José Geraldo de Barros Martins

O Casamento dos Arnolfini, 1434 ~ Jan van Eyck
Ilustração enviada pelo autor
Os Detetives Gelados
(Roberto Bolaño)

Sonhei com detetives gelados, detetives latino-americanos
que tentavam manter os olhos abertos
no meio do sonho.
Sonhei com crimes horríveis
e com tipos cuidadosos
que procuravam não pisar em poças de sangue
e ao mesmo tempo cobrir com uma só olhada
a cena do crime.
Sonhei com detetives perdidos
no espelho convexo dos Arnolfini*:
nossa época, nossas perspectivas,
nossos modelos do Espanto.

Los Detectives Helados

Soñé con detectives helados, detectives latinoamericanos
que intentaban mantener los ojos abiertos
en medio del sueño.
Soñé con crímenes horribles
y con tipos cuidadosos
que procuraban no pisar los charcos de sangre
y al mismo tiempo abarcar con una sola mirada
el escenario del crimen.
Soñé con detectives perdidos
en el espejo convexo de los Arnolfini:
nuestra época, nuestras perspectivas,
nuestros modelos del Espanto.


O espelho convexo dos Arnolfini
Ilustração enviada pelo autor

(*) O “espelho convexo dos Arnolfini” é um detalhe do quadro “O Casamento dos Arnolfini”, a mais famosa pintura de Jan van Eyck, realizada em 1434, que se encotra atualmente na National Gallery em Londres. No espelho podemos observar, atrás do casal Arnolfini que está de costas, mais duas figuras: o sacerdote que realiza a cerimônia e o próprio autor. Nota-se acima do quadro, na parede a seguinte inscrição “Johannes van Eyck fuit hic 1434" (Jan van Eyck esteve aqui em 1434). Este é, na história da arte, o primeiro registro de um auto-retrato dentre uma cena diversa, recurso que teria inspirado Diego Velásquez na famosíssima pintura “La Família de Felipe IV” e que seria utilizado nos séculos vindouros. A idéia de um sonho com detetives perdidos neste famoso espelho, é ao meu ver a mais alta expressão artística na poesia de Roberto Bolaño, reunida no livro “La Universidad Desconocida” - Editorial Anagrama – Espanha – 2007, ainda inédita em Pindorama.

Ilustração enviada pelo autor

Foreign Words - Maria do Rosário Pedreira

Carriage, 60 x 70, oil on canvas, 2010 ~ Eric Zener
(tradução de Eduardo Miranda)

Between us sleep pains that you do not
know. You fell asleep first -
and my past is an antique clock
Teasing the silence. If you had

told me your name when you arrived,
you could be part of these memories already.

[in Nenhum Nome Depois, 2004]

Dormem entre nós dores que não
conheces. Adormeceste primeiro -
e o meu passado é um relógio antigo
que arrelia o silêncio. Se me tivesses

dito o teu nome quando chegaste,
podias fazer já parte destas memórias.

[in Nenhum Nome Depois, 2004]

Releitura - Luiz Gama

Original Sin: 36" x 30" Oil on Canvas ~ Nicholas Petrucci
Soneto

Sob a copa frondosa e recurvada
De enorme gameleira, Secular,
Sentado numa ufa a se embalar
Estava certa moça enamorada.

Eis que rola dos ramos inflamada
Tremenda jararaca a sibilar;
Fica a jovem na corda, sem parar,
Como a Ninfa de amor eletrizada!

Anjo Bento! exclamaram os circunstantes;
— Foge a cobra de horrenda catadura,
Os olhos revolvendo coruscantes.

Mas a bela moçoila com frescura
Num sorriso acrescenta — é das amantes
Nem das serpes temer a picadura.

[in Trovas Burlescas & Escritos em Prosa, Edições Cultura, 1944 ]

Luiz Gama
Luiz Gonzaga Pinto da Gama (Salvador, 21 de junho de1830 — São Paulo, 24 de agosto de 1882) foi um rábula, orador, jornalista e escritor brasileiro. Nascido de mãe negra livre e pai branco, foi contudo feito escravo aos 10 anos, e permaneceu analfabeto até os 17 anos de idade. Conquistou judicialmente a própria liberdade e passou a atuar na advocacia em prol dos cativos. Foi um dos raros intelectuais negros no Brasil escravocrata do século XIX, o único auto-didata e o único a ter passado pela experiência do cativeiro; pautou sua vida na defesa da liberdade e da república, ativo opositor da monarquia. Teve uma vida tão ímpar que é difícil encontrar entre seus biógrafos, algum que não se torne passional ao retratá-lo. Morreu seis anos antes de ver seus sonhos concretizados.

Ilustração - Tim Burton





Vídeo - Smith & Foulkes




This Way Up, animation by Smith & Foulkes

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