Definição

... da totalidade das coisas e dos seres, do total das coisas e dos seres, do que é objeto de todo o discurso, da totalidade das coisas concretas ou abstratas, sem faltar nenhuma, de todos os atributos e qualidades, de todas as pessoas, de todo mundo, do que é importante, do que é essencial, do que realmente conta...
Em associação com Casa Pyndahýba Editora
Ano VI Número 63 - Março 2014

Editorial

Lance um olhar frio
Sobre a vida, sobre a morte.
E releve, cavaleiro!
Essas são as palavras na lápide de W. B. Yeats, em Drumcliff, Sligo. Tradução livre deste que vos escreve, em dedicação à uma grande amiga, que nos deixou em 31/01/11.

É sempre difícil perder alguém querido, mas a sensação de que poderíamos ter nos dado um pouquinho mais é o que mais atormenta... pensamos sempre que poderíamos ter passado mais algumas horas na companhia do ente, que poderíamos ter sido mais presentes...

Mas como sabiamente escreveu Yeats, "Lance um olhar frio sobre a vida, sobre a morte. E releve, cavaleiro!" Estar ou não estar mais neste plano (mundo, vida), irá significar o tanto que cada um quiser dedicar ao assunto. Vivemos eternamente na memória dos outros. Enquanto tivermos alguém que pense em nós, seremos eternos!

TUDA está de LUTO - um luto diferente. Não aquele luto fúnebre, cinzento, mas um luto azul, celestial, que creio combinar mais com a pessoa... E simples, como tudo na vida deveria ser.

TUDA Fevereiro traz os sempre esperados pindaíbicos Arnaldo Xavier, Roniwalter Jatobá, Souzalopes, José Geraldo de Barros Martins e este mesmo que vos escreve. Traz também a poesia de Dorival Fontana, Paulo Afonso da Silva Pinto, Pedro Dubois, e Santiago de Novais. O conto de José Miranda Filho, a tradução de Yeats por este que vos escreve, e outra tradução de James Wrigth. A ilustração de Jacek Yerka, e o ensaio de Ronald Augusto. As traduções do Under Ben Bulben de W. B. Yeats, e do Cabral, por James Wright. Como sempre, muita coisa boa!

E como é de costume, aproveitem tudo de TUDA, SEM NENHUMA MODERAÇÃO, que ela só é contra a INDIFERENÇA!!!

Que na paz descanse quem deitou-se para descansar...

Na LUTA companheiros, devagar e sempre - só por hoje - e TUDA de bom!

Eduardo Miranda
O (auto-proclamado) Editor

Dívida Interna

Editor
Eduardo Miranda

Capa
José Geraldo de Barros Martins

Digitação
Eduardo Miranda

Revisão
Dos autores...

Colaboradores
Arnaldo Xavier, Dorival Fontana, Eduardo Miranda, Fernando Pessoa, Jacek Yerka, James Wright, João Cabral de Melo Neto, José Geraldo de Barros Martins, José Miranda Filho, Paulo Afonso da Silva Pinto, Pedro Du Bois, Ronald Augusto, Roniwalter Jatobá, Santiago de Novais, Souzalopes e W. B. Yeats.

E-mail
tuda.papel.eletronico@gmail.com

Poesia - Arnaldo Xavier

Sea Witch, by Chelsea Rose
original acrylic + pen and ink painting
(...)

34

Se de prata
A tiara
Face bala perfura com frieza

Coração tambor
noite dourada
Mais escura
atalho então destino pavio

A explosão

35

Vazio
Anterior prato à esquerda da cega velhaca
Pondera impossível lamparina
Negra acesa sobre a cabeça
Como Arco-íris
                    floresce

Vazio
Interior prato à direita da cega velhaca revela
Fria balança víbora bailarina
Se julga
Pássaro sem cela

Eterna

A fuga

36

Obra
de vento

     Punhais de areia
Semelhantes cães
     Punhais de areia
Semelhantes brasas
     Punhais de areia
Semelhantes dentes
                              De incerto tempo
Lavam
os pés prateados deste mar

Noite sem curva
Lampadanado lume despe
coração circulo
uiva

O horizonte

(...)

[ in Entrada de Luz, inédito ]

Arnaldo França Xavier (Campina Grande, 19/11/1948 - São Paulo, 26/01/2004) foi poeta, escritor e pensador do movimento negro no Brasil. Publicou Boleros Pretos, A Roza da Recvsa, Ludlud e Manual de Sobrevivência do Negro no Brasil (ilustrado pelo chargista Maurício Pestana). Participou ainda de inúmeras coletâneas de bibliografia restrita e pequenas tiragens.

Poesia - Souzalopes

extracted from Divas Annas, Original oil painting
(...)

um sol de sebo na prensa
do medo que merda carcoma
a parte do verme a pátria
de todo defunto é seu morte
seu leste vindo sem vento
pedaço de peste no prato
tão triste tão sujo caco
carcoma tudo carcoma

carcoma tudo até
seu dente senhora cair
tudo carcoma sem dente
já podre com precioso
osso no riso carcoma
tudo senhora que é
seu riso carcoma tudo
carcoma o fel de quem ri

(...)

[ da série Carcoma in Ferro & Carcoma, inédito ]

Mário Luis de Souza Lopes, ou simplesmente Souzalopes, nasceu em Itajuípe, BA. Advogado, publicou, entre outros, o livro de poesia Todo Fogo.

Poesia - Santiago de Novais

Imagem enviada pelo autor, modificada pelo editor.


Sem Razão

Tua mão à toa.
Agora estou nas mãos dos outros
Desfiam meus ossos em fios luminosos
Mãos em que mãos sem saber a quem dizer Adeus!
Sem ser ao menos eu, de uma pra outra,
Em palavras ditas por dizer
Não fui atendido em minhas preces.
Anjos ao invés de bênçãos cravaram-me as unhas nas costas.
Sangue no breu. Quem se lembrou?
Fingir de morto para viver.
Quem enganou se nem a mim?
Estive em guerra e nunca estive.
Paro de dizer. Ouve teu homem.
Se quer ser torto, sê.
Se quer ser sou seu.

Santiago de Novais, nasceu em Minas, Campos Gerais. É professor de idiomas, tradutor, educador e poeta. Atualmente vive e trabalha em Nequén, Argentina.

Poesia - Dorival Fontana

Sakineh Mohammadi Ashtiani - Oil on Canvas by Theresa Walloga

Sakineh

Atiraram a primeira pedra,
entre tantas no caminho.
sob o véu sangue...
pelo “sagrado” código legal,
institucionalizado crime.
Deuses fundamentalistas
sentenciam penas capitais
ao louvor unilateral da honra.
Intransigente poder patriarcal.
Ignóbil fanatismo das tribos.
Não matarás o próximo,
exceto: viúvas, adúlteras, amantes...
Aqui como lá, o ciúme macho
executa mulheres friamente;
sem direitos humanitários, sem clemência.
Que Alá proteja todos os homens,
as mulheres que geram homens,
que se protejam.

Poesia - Pedro Du Bois

Jacek Yerka
Recomeço

Sou remanescente, lado avesso
ao desconhecimento. O oposto ao corpo,
luz. A bravura da ovelha, o cão guardando
o rebanho. Recomeço.

Habito terras desprezadas e me faço estéril
pensamento. Guardo a palavra.

Sou vento impreciso e ágil
sobre a cobertura. Espalho a poeira
e a misturo entre lajes.

(Pedro Du Bois, inédito)

http://pedrodubois.blogspot.com
http://revistacerradocultural.blogspot.com/2011/01/desprezo.html
http://www.correiodomunicipio.com.br/corpo.htm
http://www.meiotom.art.br/
http://www.limacoelho.jor.br/busca/busca_vitrine.php?busca=Pedro Du Bois
http://vidraguas.com.br/wordpress/2011/01/28/hospedes-poema-de-pedro-du-bois/
http://janelasevarandas.blogspot.com/
http://revistaliteratas.blogspot.com/2011/01/hospedes.html

Poesia - Paulo Afonso da Silva Pinto

Coocon

(...)

Maldigo

Maldigo
a mim,

maldigo
o buraco
sem fim.

Minha alegria
é intempestiva,

fico triste
nas ocasiões
festivas.

As visitas
que nos
visitam

Apenas para
se sentirem
felizes

iludiram-se
na ilusão
de criar-nos
invisíveis
muros.

Em verdade,
teciam
os preciosos
fios
dos nossos
casulos:

Nós,
os loucos,

Nós,
os lúcidos,

fetos
do findo século,

fecundaremos
a terra

que dará
luz

a muitos
outros

lobisomens,
capetas,
caiporas,
romãozinhos...

- multidões
incontroláveis

de bichos
mais

a nós
iguais.

Depois,

inumaremos
nossos fósseis
em paz.

[ in Poemas de Pé e Espinho, inédito ]

Crônica - Roniwalter Jatobá

http://orphart.blogspot.com
Em algum lugar do futuro

O desejo de saber das crianças sempre faz a gente ir fundo na memória. Há anos, fui indagado cara a cara por meus dois filhos sobre como tinha sido minha infância. Conto que só fui ver luz elétrica com doze anos de idade. E assim mesmo do escurecer às 10 horas da noite. Era quando o gerador movido a diesel, da minha cidadezinha no sertão baiano, produzia com força de vaga-lumes um fio de energia apenas capaz de encher casas e ruas de luzes amarelas e fracas.

-- Foi a partir daí que, como um personagem de Cem anos de solidão, do escritor colombiano Gabriel García Marquez, vim a conhecer o gelo.

Totalmente urbanos, os dois meninos não me levaram muito a sério. Em seguida, juro que era a mais pura verdade. Acostumados à tecnologia eletrônica, disponível em seus apartamentos na metrópole, relegaram meu relato à imaginação do ficcionista.

-- Ah, pai, um contador de histórias.

Continuo em frente. Digo que naquela época vi o primeiro filme, aquele que a gente dificilmente esquece: um policial chamado A Estrada 301. Televisão só mais tarde, uma única vez, numa rápida viagem a Salvador, quando também me deslumbrei com o mar.

Não éramos tão pobres, no entanto. O pai tinha um rádio a pilha, caixote de madeira que captava vozes, melodias, chiados e ruídos estáticos diretamente do céu, naquele fim do mundo.

A luz elétrica, evidentemente, foi o primeiro contato com a modernidade. A partir daí, tive muitos sonhos na vida. Um deles era ir para a cidade grande e ser motorista de táxi. A idéia havia surgido após leitura de O fio da navalha, do escritor inglês Somerset Maugham. O livro narra a história de um homem em busca da fé. Assustado pela presença da morte durante uma guerra, ele abandona uma oportunidade de riqueza e prestígio para procurar, em viagens pelo mundo, sabedoria, paz e felicidade. Ao final do aprendizado, ele vai ser taxista em Nova York. Seu argumento para a escolha era simples.

-- Sou muito sensato e muito prático -- concluía em seu raciocínio desprendido de dinheiro. -- Como chofer de táxi não precisarei trabalhar mais que um certo número de horas, para ter cama e comida e me prevenir contra a depreciação do carro.

Fui, porém, por outros caminhos. De uma infância sem luz, hoje navego na Internet. Se Cabral levou meses para chegar ao Brasil há 500 anos, posso em minutos saber como estão as águas do rio Tejo, em Lisboa.

Mas, às vezes, não sou tão moderno assim e busco a lição do passado. Sei que cada infância é diferente como as águas que rolam num rio.

Muitas vezes, só, vou à procura do tempo de menino, para mergulhos no tempo.

Abro a janela do velho apartamento, cubro o computador com a capa preta, apago todas as luzes e olho para o lado mais escuro de minha rua.

Ali, sinto a antiga visão do anoitecer, em esquinas perdidas na bruma. O mesmo negrume que fascinou uma criança acostumada com suaves remansos de riachos ou a distante estrela que pulsa nos confins do universo.

Nessas noites fictícias, mas recheadas de esperanças, sigo com o pensamento longe, na vida, em algum lugar do futuro.

Conto - José Geraldo de Barros Martins

Ilustração de José Geraldo de Barros Martins
O Filósofo-Mestre

O professor distraiu-se por um momento e ficou pensando na paisagem da rodovia Rio-Santos, no trecho entre Ubatuba e Parati... depois fez uma comparação (um tanto sem sentido) com a rodovia que liga Purmamarca a San Pedro do Atacama em que a divisa da Argentina com o Chile está a cerca de 5.000 metros de altitude... de repente a pergunta de um aluno:

Professor, o que o senhor com sua vasta experiência, tanto na filosofia como na vida, pensa sobre os times de futebol do interior que estão trocando de nome e de cidade??? Não seria, sob o ponto de vista da filosofia pré-socrática, uma vitória de Heráclito sobre Parmênides???

O professor sentiu uma certa ironia na pergunta... pensou que os alunos apostavam que ele não sabia que o Guaratinguetá Futebol Ltda recentemente se transformara em Americana Futebol Clube Ltda, saindo do Vale do Paraíba e se transferindo para a região metropolitana de Campinas, e também que ele desconhecia o fato do Grêmio Esportivo Barueri ter se transformado em Grêmio Prudente Futebol Ltda. (desta vez foi só seguir as Rodovias Castello Branco e Raposo Tavares até o fim)... pensou também que o aluno arrogantezinho estava se sentindo inteligente no meio dos colegas porque fazia um paralelo da situação destes times que mudam de cidade com a filosofia de Heráclito, que declara que tudo muda, que as coisas fluem, filosofia esta que é antagonizada pela filosofia de Parmênides que afirma que nada muda. Por isto a “vitória de Heráclito sobre Parmênides”.

O professor olhou seus alunos demonstrando calma e segurança, sorriu levemente e por fim disse:

Se vocês gostam tanto de filósofos pré-socráticos leiam Demócrito de Abdera, que afirrma que o riso torna o homem sábio...Quanto a estes times de futebol que mudam de cidade e de nome, afirmo que em primeiro lugar, sob o ponto de vista futebolístico é uma grande sacanagem com as divisões inferiores... quem estava classificado para a primeira divisão do Campeonato Paulista era o Guaratinguetá, se eles resolveram mudar para Americana que voltem disputando a Terceira Divisão. Em segundo, sob o ponto de vista sociológico é uma forma de tirar a identidade dos habitantes das cidades do interior: o morador de Presidente Prudente deve torcer pela Prudentina, o torcedor de Americana deve torcer pelo Rio Branco, e não para estes times inventados pelos empresários que não tem raízes nas cidades. Em terceiro lugar, agora sob o ponto de vista filosófico, penso que o caso destes times devem ser analisados pela ótica da teoria da hiper-realidade e da teoria do simulacro de Jean Baudrillard... Agora, sinceramente, acho que vocês deveriam parar de se preocupar com tais besteiras e ouvir mais as pessoas simples... parem, conversem, perguntem, percebam como estas pessoas vivem, como preparam a sua comida, como se divertem, ouçam sobre como são os sonhos destas pessoas... percebam como está o mundo em sua volta... joguem fora estes micro-walkmans que vocês chamam de i-phones e liguem o rádio... isto mesmo... o rádio de pilha... eu sempre ando com um radinho, ouçam...

O professor então ligou seu rádio de pilha (que sempre permanecera desligado sobre a sua mesa), o aparelho estava sintonizada em sua estação predileta... estava tocando “Estácio, Holly Estácio” na gravação original. A voz de Luiz Melodia anunciava:
“O Estácio acalma o sentido dos erros que eu faço
Trago não traço, faço não caço
O amor da morena maldita do Largo do Estácio”
Vejam esta frase... poeticamente perfeita... ouçam o arranjo de bolero... percebam o solo de gaita de Rildo Hora... Esta é que é a verdadeira filosofia!!!

E então os alunos ouviram o resto da canção e compreenderam...

Conto - José Miranda Filho

O Retrato do Sertão – 12

Virgulino não deu ouvidos aos conselhos de coronel Saturnino quando lhe pediu para não ir a Laranejeiras tratar do olho. A advertência que lhe fizera entendiou-o tanto, a ponto de mandá-lo a puta que o pariu várias vezes por causa das precauções que teria de ter para não se arriscar comparecer a lugares em que nunca estivera antes. Porém, Virgulino, homem extremamente corajoso, teimoso e vaidoso, queria provar sua popularidade.!
Ninguém era capaz de fazê-lo recuar de suas idéias, exceção apenas fazia a Corisco e mais dois cabras com os quais mantinha dedicação total.
Metade do povo de Laranjeiras o admirava pelo objetivo de sua luta, enquanto a outra metade se divida, entre odiá-lo, matá-lo ou prendê-lo.
Mesmo amparados nos momentos aflitivos da vida quando ele emprestava dinheiro ou ajudava no sustento de suas famílias, o sertanejo jamais acreditou em suas benesses. Julgavam - o violento demais e demasiadamente presunçoso pela causa que defendia.

Dias atrás ocorrera a notícia de que ele estaria na redondeza, escondido na fazenda de algum coronel coiteiro.

Saturnino temia ser processado e preso por lhe dar guarida e dificultar a ação policial. Várias vezes tentou persuadí-lo da idéia de se tratar em Laranjeiras. Traria doutor Brandão até sua fazenda. Mas, ele sempre resistia à idéia. Batia o pé, e dizia não temer ameaças de macaco nenhum, principalmente desse tal major Lucena que o chamou de covarde, incasto e incendiário de vilas e casas de sertanejos.

Na aporia da discussão que ambos tiveram, distratou Saturnino chamando-o de comborço, complascente, corruto e covarde.
Saturnino ouvia tudo silenciosamente....Acabrunhado e temeroso nada respondia.

Lampião queria testar sua coragem e lealdade.

- Meus conselheiros já fizeram a varredura do local, compadre! Já se certificaram de tudo. Fique tranquilo! Não tenho o que temer das ameaças do major Lucena. Posso ir à Laranjeiras sem perigo algum quanto à minha segurança. Irei de qualquer jeito. Já decidi. Irão comigo apenas meus três fiéis companheiros.

Quanto à segurança e de seus homens, Virgulino sempre fora cauteloso. Não aceitava, porém, conselhos de quem quer que fôsse. Tão sòmente ouvia seu Estado-Maior, com os quais se reunia frequentemente. Repudiava veementemente quaisquer advertências que lhe faziam os compadres e coiteiros, principalmente esses de quem sempre desconfiou, porque um dia, certamente, sería traído por algum deles.
Seu desejo, entretanto, era mostrar ao povo de Laranejiras que não temia ameaças. Queria ser recebido com ovação, porém seus conselheiros, não concordando com suas idéias conseguiram persuadir-lhe, e a recepção se transformou numa simples visita ao médico, sem que sua presença fosse notada na cidade.

− Não aceito que alguém me diga o que fazer ou deixar de fazer, compadre! Ouço e aceito às vezes o que me dizem Corisco, Faísca e Zé Bedeu, meus únicos amigos leais de quem tenho absoluta confiança. Tenho informações confiáveis deles que a cidade está tranquila, mas acatei seus argumentos: Iremos sem pompas.

Na madrugada do dia seguinte Lampião partiu para Laranjeiras, deixando Saturnino aliviado de uma possível invasão policial à sua fazenda.

Um detalhe importante, contudo, foi esquecido por seus conselheiros: Desde o fracassado seqüestro do Coronel Antonio Gurgel, a Polícia seguia e mapeava seus passos. Possuía informações confidenciais dos lugares pelos quais passava e onde se escondia. Para capturá-lo, dependia apenas da liberação de verbas federais, a fim de organizar a expedição, cujo tempo demandaria semanas ou meses, cavalgando pelo sertão.

Convalecendo-se da operação do olho na fazenda de coronel José Pereira Lima nos arredores de Anjicos, Virgulino parecia sentir-se confortável e seguro. Jamais estivera antes mais de um dia no mesmo lugar. Estratégia que sempre usava e seguia à risca para despistar seus persseguidores. Mas, a exceção, talvez devido ao estado de saúde, fora sua inimiga cruel.

− Bom dia, patrão! Cumprimentou Zé Vaqueiro nervoso, à porta da casa rodeada de azaléias que Celestina plantava e cuidadosamente religiosamente.

Mal humorado, após uma noite mal dormida por devaneios terríveis, a ponto de dona Celestina ter interrompido o sono várias vezes para lhe preparar o chá de maracujá, coronel Saturnino respondeu insipidamente:

− Bom dia, Zé...Tá nervosos? ...Tá com medo de quê?

− Oia, seu Coroné, medo eu nunca tive, mas de vez em quando a gente sofre uns arrepios no corpo que dá prá assustar. As notícias que veem da cidade não são boas. O Chiquinho me contou esta manhã enquanto o senhor dormia, que capitão Virgulino foi cercado pela federal na fazenda de coronel Zé Pereira. Ele não me deu maiores detalhes, mas me disse que foi um tiroteio intenso e que se salvaram apenas alguns cabras, que já estão presos. Não soube me dizer quantos foram, apenas que foi uma carnificina. Na opinião dele mataram Virgulino, Maria Bonita e uns quinze ou vinte cabras, e mais uns dez ou quinze do coronel Zé Pereira. O terreiro da fazenda mais parece um rio de sangue. Tem defunto espalhado prá todo canto. Me disse que arrancaram as cabeças de Lampião e Maria Bonita, botaram numa lata de querozene com cal e sal e levaram para Sergipe. Acho melhor o senhor ir até Laranjeiras se informar melhor dos acontecimentos. Chiquinho estava muito nervoso. Me disse que padre Fausto já estava a caminho do gabinete do prefeito junto com outros coronéis.

− E, como foi isso, Zé? Como tudo aconteceu?...Como ele soube desse tiroteio? Lampião passou por aqui ontem aqui.. como...

Inpaciente, sem saber que rumo tomar, Saturnino andava de um canto ao outro do alpendre, até que Zé o convenceu ir à cidade.

− Tá bom, Zé. Vamos pra Laranjeiras. Mas, tem que ser agora. Vá arrear os cavalos. Traga o rifle, meu revolver e a cartucheira cheia.

Celestina ficou apreenssiva. Não queria ver marido envolvido mais do que esteve na noite anterior, quando deu abrigo a Lampião, e se aventurasse numa viagem dessas sem ao menos ter noticias mais confiáveis. Poderia ser uma emboscada, como já acontecera tempos atrás, ou até ser preso por ter lhe dado abrigo... Temia pelo marido.

A cidade de Laranjeiras era um alvoroço só naquela manhã ensolarada e quente. Mais parecia dia de eleição, de tanta gente reunida ao entorno da prefeitura, cujo prédio também abrigava o Fórum, a Câmara de vereadores e a cadeia pública.

A multidão aguardava ansiosa o pronunciamento do prefeito que mandara um emissário até a fazenda de Zé Pereira para se informar dos acontecimentos. Todos estavam todos ávidos por notícias e saber quem havia denunciado Lampião... Como fora capturado...Onde fora encontrado...E, se realmente o haviam matado.

Coronel Saturnino apeou do cavalo em frente ao prédio do Paço municipal e se dirigiu imediatamente ao gabinete do prefeito, aonde já se encontravam vários líderes locais. Lá estavam alguns coronéis coiteiros, chefes de partidos políticos, padres, o emissasário de padre Cicero e outras autoridades menos importantes do Estado. Cumprimentou-os a todos e seguiu diretamente para o adro do paço observar a multidão que aguardava por informações.

No meio da multidão estava Sá Lorena, ao lado do marido..

No gabinete do prefeito, os líderes do alto comando udenista aguardava o retorno do menssageiro.

− Prefeito, o senhor já tem algumas notícias para nos adiantar? Perguntou coronel Saturnino, enquanto pendurava o chapéu de couro no cabideiro, logo abaixo do retrato do governador do Estado.

- Até agora sabemos pouca coisa, coronel. Apenas que Lampião e sua mulher foram mortos e seus corpos enviados para Sergipe. Segundo me disse esta manhã o empregado de Jeremias quando voltava para casa. O tiroteio durou uns vinte minutos.

- Já temos notícias que lá em Sergipe, estão tentando incriminar o coronel José Pereira Lima, e denunciá-lo por crime de acoitamento e por ter dificultado a ação da polícia. A coisa pode ficar feia para o nosso lado também, coronel.

- Tomemos cuidado, companheiros, disse temeroso.

Reunida na praça principal a multidão impaciente pedia por notícias. Aguns desaforados baderneiros iniciaram um tumulto, mas a polícia mesmo em número reduzido de homens pôde contê-los.

− Será que foi seu Quincas quem denunciou Lampião e recebeu o dinheiro da recompensa? Perguntava Sá Lorena aos curiosos ao seu redor, demonstrando alegria que estampava no rosto envelhecido pelas rugas.

− Não, foi Agaciel quando veio buscar doutor Brandão para examinar o pai, respondeu a secretária, também curiosa e arrempedida de ter dito que Virgulino estivera no consultório no dia anterior.

− Não foi Agaciel, disse alguém ao lado. Foi o próprio Ze Pereira.

Na verdade, ninguém sabia dos fatos.

Tentando ultrapassar o cordão de isolamento e chegar ao gabinete do prefeito, padre Fausto avistou-se com Sá Lorena, e insipidamente lhe disse:

− Está satisfeita agora, bruxa?

− Não lhe respondo com raiva. Não me interessa saber de sua preocupação. O senhor é que deve responder pelos seus atos. Seu passado...Sua fama...Apenas eu gostaria de saber quem foi o herói que dedurou este cafajeste!. O senhor que se cuide, padre! A coisa pode piorar para o seu lado. Os boatos se espalham...E eu...
A gritaria da multidão impediu que Sá Lorena completasse sua insatisfação.

− Foi coronel José Pereira, gente!. Gritou o açogueiro do outro lado da multidão! Eu trabalhei muitos anos prá ele. Ele nunca foi confiável. Sempre foi covarde e traiçoeiro.

− Olha, acredito no Zé açougueiro, disse Dona Cleusa, uma senhora católica e assídua frequentadora de reuniões políticas no gabinete do prefeito.

− Só pode ter sido mesmo Zé Pereira quem dedurou Lampião, disse Ernestino, um honem de baixa estatura e franzino que já havia trabalhado prá ele colhendo milho. É um homem sem caráter, desleal, e acima de tudo interesseiro, mão de vaca e avarento. Não paga pra quem trabalha pra ele. Vende a própria alma ao Diabo por dinheiro. É um miserável.

Todos concordaram com Ernestino e Zé açougueiro. Sabiam que o capitão Virgulino Ferreira estava escondido na fazenda de Zé Pereira, convalescendo-se da cirurgia do olho após ter passado pela fazenda de Saturnino.

Coronel Saturnino, homem forte na região, político influente, amigo e correligionário do governador do Estado, temia o que podería lhe acontecer. Entre tantos amigos, de quem tería ajuda, se necessário fosse provar sua inocência, contaria com o juiz de Direito de Angicos, o delegado da cidade de Laranjeiras, o Major Lucena, comandante da Policia Militar, padre Fausto, o bispo Don Francisco, padre Cícero, figuras respeitadíssimas, e tantos outros cidadãos influentes do Estado de Alagoas.

Coronel Saturnino permaneceu o dia toso em Anjicos. Pousou na fazenda do coronel Amâncio, outro coiteiro e amigo, com quem dividiu suas preocupações. Bebeu cachaça a noite inteira para aliviar-se da incômoda situação em que se encontrava.
Finalmente, na tarde do dia seguinte, após confirmadas as notícias da morte de Lampião e su a mulher, voltou para a fazenda. Armou seu bando, e pôs-se de prontidão a fim de se acautelar e prevenir-se de qualquer investida da polícia militar.

José Miranda Filho, ex-Presidente e fundador do PMDB em São Caetano do Sul, Venerável Mestre da Loja Maçônica G. Mazzini (grau 33), é advogado e contador, colabora com o jornal ABC Reporter e atua como Diretor Financeiro do Conselho Gestor do Hospital Benificente São Caetano. Posta no Blog do Miranda.

Tradução - Eduardo Miranda

Ben Bulden - Hazel Greene
Ao Pé do Ben Bulben
para Márcia Ferrari Castro

Ben Bulben é uma grande formação rochosa no Condado de Sligo, aqui na República da Irlanda. Faz parte das Montanhas de Dartry, uma área conhecida como "O País de Yeats". Às vezes grafado Benbulben ou Benbulbin, anglicismo para o nome irlandês "Binn Ghulbain" - Binn, pico ou montanha; Ghulbain, uma referência a Conall Gulban, rei irlandês do Século V, filho de Niall Noígiallach.
I

Juro por tudo que é sagrado
Sobre o Lago Mareotic
Que as bruxas do Atlas já sabiam,
Falaram e definiram o cantar dos galos.

Juro por aqueles cavaleiros, aquelas damas
Pele e forma comprovadamente sobre-humanas,
Palidez, lânguida amizade
Simulando certa imortalidade
Plena de suas paixões discernidas;
Conduzem manhãs de invernias
Onde o Ben Bulben rouba a cena.

Eis o que querem dizer, na essência.

II

Muitas vezes vivemos e morremos
Entre as eternidades que criamos,
À raça e à alma pertinentes,
Sendo a antiga Irlanda disso sapiente.
Se alguém morre tranquilo em seu leito
Ou com um tiro de espingarda no peito,
Uma breve cerimônia para entreter
É o pior que se pode oferecer.
Embora a labuta dos coveiros seja maior,
Mais calibre em suas armas, em seus corpos mais vigor.
Apenas socam nossos defuntos terra adentro
Que tentam sobreviver ao menos em pensamento.

III

Vocês que presenciaram Mitchel* em seu clamor:
"Envie a guerra para nós, ó Senhor!"
Saibam que quando nada resta a ser dito
E um homem ainda luta pela vida, aflito,
Dos olhos cegos escorrem lágrimas,
Sua consciência em estâncias últimas
Por um instante, em distração se desfaz,
Ri em voz alta, no coração sente uma paz.
Mesmo alguém experiente e sabido
Perante tal violência se sente perdido
Antes que ele possa erguer seu prumo,
Escolher seu companheiro, tomar seu rumo.

IV

Escultor e Poeta, trabalhe,
Não deixe que a moda manche
O que seus antepassados fizeram.
Traga a alma dos homens a Deus,
Faça com que eles encham o berço.

Medidas foram tomadas no cerco:
Repercussão de doutrinas egípcias,
Que Fídias forjou em formas propícias.

Uma prova Michelangelo assina
No teto da Capela Sistina,
Onde um Adão praticamente sem roupa
Perturba uma Senhora quase louca
Ao ter suas entranhas expostas,
Provando que sempre haverá respostas
Antes que a mente secretamente trabalhe:
Viole a perfeição da humanidade.

O Século XV como pano de fundo
Para Deuses e Santos deste mundo
Jardins onde almas ficam à vontade;
Onde tudo que se reflete nos olhos,
Flores, gramas, e céus assombrosos,
Lembram formas que são ou foram
Quando sonâmbulos ainda sonhavam.
E quando se vão, ainda dizem,
Do único leito que ainda tinham,
Que os céus sobre eles se abriram.

Rodopio exacerbado;
Quando o sonho já tinha acabado
Calvert, Wilson, Blake e Claude, reunidos
Preparam o repouso dos Escolhidos
Palmer discursa, mas ainda assim
A dúvida repousa sobre mim.

V

Poetas irlandeses, façam sua parte,
Cantem o que quer que seja arte,
Descartem aquilo que talvez floresça
Fora de forma, dos pés à cabeça,
De corações e cabeças inviáveis
Produtos de fontes não-confiáveis.
Cante aos componeses, seus vigores,
Cavalgue país afora, pelos interiores
A santidade dos monges, e além
Os beberrões, os abstênicos também;
Cante a alegria de senhores e senhoras
Abatidos ao longo da história
Por séculos e séculos heróicos;
Tenha em mente estes outros dias
Em que ainda veremos chegar a vez
Deste indomável espírito Irlandês.

VI

Sozinho ao pé do Ben Bulben
Yeats descansa no adro de Drumcliff.
Um antepassado seu foi reitor por lá
Há muitos anos, numa igreja das redondezas.
Uma antiga cruz na estrada,
Sem lápide, nem dedicatória;
Num calcário escavado próximo ao local
Ao seu dispor, estas palavras eram talhadas:
Lance um olhar frio
Sobre a vida, sobre a morte.
E releve, cavaleiro!

* John Mitchel (03/11/1815 – 20/03/1875) foi um ativista e nacionalista irlandês, advogado e jornalista político. Nascido em Camnish, perto de Dungiven, no Condado de Derry (Londonderry para os norte-irlandeses), tornou-se um dos líderes dos grupos ‘Young Ireland’ e ‘Irish Confederation’. Seu livro ‘Jail Journal’ é um dos textos mais famosos do nacionalismo irlandês. Aqui Yeats refere-se à frase de Mitchell "O Todo-Poderoso certamente enviou a praga da batata, mas os inglêses criaram a Fome e uma ‘oração’ para a guerra - "Envie guerra para nossos tempos, ó Senhor!"

Under Ben Bulben

I


Swear by what the sages spoke
Round the Mareotic Lake
That the Witch of Atlas knew,
Spoke and set the cocks a-crow.

Swear by those horsemen, by those women
Complexion and form prove superhuman,
That pale, long-visaged company
That air in immortality
Completeness of their passions won;
Now they ride the wintry dawn
Where Ben Bulben sets the scene.

Here s the gist of what they mean.

II

Many times man lives and dies
Between his two eternities,
That of race and that of soul,
And ancient Ireland knew it all.
Whether man die in his bed
Or the rifle knocks him dead,
A brief parting from those dear
Is the worst man has to fear.
Though grave-diggers' toil is long,
Sharp their spades, their muscles strong.
They but thrust their buried men
Back in the human mind again.

III

You that Mitchel's prayer have heard,
'Send war in our time, O Lord!'
Know that when all words are said
And a man is fighting mad,
Something drops from eyes long blind,
He completes his partial mind,
For an instant stands at ease,
Laughs aloud, his heart at peace.
Even the wisest man grows tense
With some sort of violence
Before he can accomplish fate,
Know his work or choose his mate.

IV

Poet and sculptor, do the work,
Nor let the modish painter shirk
What his great forefathers did.
Bring the soul of man to God,
Make him fill the cradles right.

Measurement began our might:
Forms a stark Egyptian thought,
Forms that gentler phidias wrought.
Michael Angelo left a proof
On the Sistine Chapel roof,
Where but half-awakened Adam
Can disturb globe-trotting Madam
Till her bowels are in heat,
proof that there's a purpose set
Before the secret working mind:
Profane perfection of mankind.

Quattrocento put in paint
On backgrounds for a God or Saint
Gardens where a soul's at ease;
Where everything that meets the eye,
Flowers and grass and cloudless sky,
Resemble forms that are or seem
When sleepers wake and yet still dream.
And when it's vanished still declare,
With only bed and bedstead there,
That heavens had opened.
Gyres run on;
When that greater dream had gone
Calvert and Wilson, Blake and Claude,
Prepared a rest for the people of God,
Palmer's phrase, but after that
Confusion fell upon our thought.

V

Irish poets, earn your trade,
Sing whatever is well made,
Scorn the sort now growing up
All out of shape from toe to top,
Their unremembering hearts and heads
Base-born products of base beds.
Sing the peasantry, and then
Hard-riding country gentlemen,
The holiness of monks, and after
Porter-drinkers' randy laughter;
Sing the lords and ladies gay
That were beaten into the clay
Through seven heroic centuries;
Cast your mind on other days
That we in coming days may be
Still the indomitable Irishry.

VI

Under bare Ben Bulben's head
In Drumcliff churchyard Yeats is laid.
An ancestor was rector there
Long years ago, a church stands near,
By the road an ancient cross.

No marble, no conventional phrase;
On limestone quarried near the spot
By his command these words are cut:
Cast a cold eye
On life, on death.
Horseman, pass by!


Eduardo Miranda é músico, escritor, poeta, e tradutor. Guitarrista e fundador do grupo WEJAH, atualmente lidera o projeto musical The Virtual Em3, é integrante da banda Wellfish e colabora no Stillwater Project. Publicou Quase (Casa Pyndahýba, poesia, 1998) e as coletâneas Amigos (Casa Pyndahýba, 1994) e Contra Lamúria (Casa Pyndahýba, 1995). Editor de TUDA, também dá expediente em alguns blogs, e nas horas vagas é Consultor de Tecnologia da Informação em Dublin, República da Irlanda.

Foreign Words - João Cabral de Melo Neto

Femme aux Bras Croisés, Pablo Picasso - Oil on lithograph (1902)

The End Of The World
translated by James Wright

At the end of a melancholy world
men read the newspapers
Men indifferent to eating oranges
that flame like the sun.

They gave me a apple to remind me
of death. I know that cities telegraph
asking for kerosene. The veil I saw flying
fell in the desert.

No one will write the final poem
about this particular twelve o'clock world.
Instead of the last judgment, what worries me
is the final dream.

O Fim Do Mundo

No fim de um mundo melancólico
os homens lêem jornais.
Homens indiferentes a comer laranjas
que ardem como o sol.

Me deram uma maçã para lembrar
a morte. Sei que cidades telegrafam
pedindo querosene. O véu que olhei voar caíu no deserto.

O poema final ninguém escreverá
desse mundo particular de doze horas.
Em vez de juízo final a mim me preocupa
o sonho final.

Releitura - Fernando Pessoa

Max Neutra
Uns Versos Quaisquer

Vive um momento com saudade dele
Já ao vivê-lo . . .
Barcas vazias, sempre nos impele
Como a um solto cabelo
Um vento para longe, e não sabemos,
Ao viver, que sentimos ou queremos . . .

Demo-nos pois a consciência disto
Como de um lago
Posto em paisagens de torpor mortiço
Sob um céu ermo e vago,
E que nossa consciência de nós seja
Uma cousa que nada já deseja . . .

Assim idênticos à hora toda
Em seu pleno sabor,
Nossa vida será nossa anteboda:
Não nós, mas uma cor,
Um perfume, um meneio de arvoredo,
E a morte não virá nem tarde ou cedo . . .

Porque o que importa é que já nada importe . . .
Nada nos vale
Que se debruce sobre nós a Sorte,
Ou, tênue e longe, cale
Seus gestos . . . Tudo é o mesmo . . . Eis o momento . . .
Sejamo-lo . . . Pra quê o pensamento? . . .

11.10.1914

Ilustração - José Geraldo de Barros Martins

Ilustração - Jacek Yerka

Jacek Yerka

Ensaio - Ronald Augusto

David Dalla Venezia
Revolta e Drogadição Anestésica

Hans Magnus Enzensberger, em ensaio cuja referência já não sei mais onde recuperar, põe em causa a pretensa periculosidade e os índices de subversão por meio dos quais se representa a poesia. E, talvez, como crença nesse meio-entendimento que nos foi legado por Platão – hoje um lugar-comum –, de que o gênero em questão seria perturbador da ordem e que por isso mesmo se justificaria, por exemplo, a expulsão do poeta da república do poder, acabamos por não dar o devido crédito à problematização irônica levantada pelo poeta e crítico cultural alemão. Inclusive porque, ao longo da história, não são raros os episódios, patrocinados pelo estado ou pela sociedade, em que poetas e escritores são submetidos à censura, às perseguições judiciais e políticas, ao exílio, etc.

Segundo Enzensberger, isto não prova, no entanto, o efetivo conteúdo periculoso, insurgente, da linguagem poética, ou artística, contra o pano de fundo do controle social. Na verdade, esses fatos nos revelam como certas superstições, encontráveis à primeira vista, apenas em algumas culturas ditas primitivas, persistem de maneira transformada na trama mental das assim consideradas altas e modernas civilizações. O que se pretende dizer é que os argumentos favoráveis à existência de uma metafísica força explosiva congenial à arte da poesia, capaz de dissolver – se fosse essa a sua intenção –, o objeto representado, são tão questionáveis quanto à “convicção” compartilhada por alguns povos de que o mero ato de deixar-se fotografar significaria a perda, o aniquilamento da alma do indivíduo que posasse, como modelo, para a realização de tal registro.

Ao pôr em cheque a presunção de subversão que se atribui à poesia, Hans Magnus Enzensberger, por meio dessa suspeita irônica, nos convida a fruir as idiossincrasias do gênero a partir de uma dimensão menos altissonante, ou menos ingênua em relação ao seu poder transformador.

Na invenção verbal greco-latina, a imagem da poesia entendida como um discurso quase que definitivo seja de condenação, seja de absolvição de personalidades ou de acontecimentos, pode ser verificada com facilidade. O poeta consagra e dessacraliza, ele se antecipa ao julgamento dos poderes divinos e terrenos, e pretende ler o pensamento de Deus antes de destruí-lo. Algo parecido se dá na poesia oral africana. Na poética peregrina dos griots, por exemplo, esta característica é marcante. O epíteto de “Boca do inferno”, pelo qual também nos referimos ao poeta barroco Gregório de Matos, é exemplar a propósito do assunto aqui discutido.

O poder, a cultura média e as idéias feitas do senso comum reivindicam para a poesia tanto o direito à periculosidade, quanto a condição de “droga estética que paralisa a vontade de resistir”.

Um mundo fundado na palavra grafada – quer pelo calígrafo, quer pelos tipos gutenberguianos –, que admite livros inspirados divinamente, isto é, livros sagrados, é que, ao fim e ao cabo, fez com que superestimássemos a poesia tanto em termos de corrupção e revolta, quanto a partir de uma recepção onde ela surge como drogadição anestésica de fundo alienante.

Finalmente, desde um ponto de vista semiótico, de um lado temos a parataxe da poesia, uma precipitação para a analogia: a arte, a forma, a síntese, etc. De outro, a hipotaxe, seja à direita ou à esquerda do leque ideológico, um pendor para os aspectos lógicos: a ciência, o “conteúdo”, a análise, etc. Em outras palavras, em relação ao policiamento hipotático dos poderes estabelecidos, sempre ciosos de seus acordos e interesses – sejam estes corretos ou não -, a inutilidade da poesia continuará sendo tolerada, mas sempre como linguagem sob suspeição.

Ronald Augusto nasceu em Rio Grande (RS) a 04 de agosto de 1961. Poeta, músico, letrista e crítico de poesia. É autor de, entre outros, Homem ao Rubro (1983), Puya (1987), Kânhamo (1987), Vá de Valha (1992), Confissões Aplicadas (2004) e No Assoalho Duro (2007). Dá expediente no blog www.poesia-pau.zip.net

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