Nesta entrevista o escritor Marcos Rey, que faleceu há precisamente dez anos, em 1º de abril de 1999, falou da infância, da boemia nos anos 50 e da vida em São Paulo
Nascido em 17 de fevereiro de 1925 no bairro do Brás e criado nos Campos Elísios, Marcos Rey, pseudônimo de Edmundo Donato, era um escritor urbano e tipicamente paulistano. Segundo o próprio autor, "suas veredas eram o asfalto e iluminadas por lâmpadas de mercúrio". Conheceu bem São Paulo e viveu intensamente os anos 50 da explosão urbana da cidade. Na brincadeira revelou que "o seu único contato com a natureza se deu quando freqüentava a extinta African Boate". Para sobreviver, fez de tudo: propaganda (ajudou a vender, creia, o Gordini), rádio e novelas de sucesso na TV. Seu primeiro livro, Um gato no triângulo, romance, é de 1953. Escreveu também Café na cama, Memórias de um gigolô, O enterro da cafetina, Malditos paulistas, Ópera de sabão, A sensação de setembro e muitos outros. Para as crianças, bolou O mistério do cinco estrelas, O rapto do garoto de ouro, Um cadáver ouve rádio.
Em junho de 1991, sábado de manhã, num bar da rua Cardoso de Almeida, no bairro de Perdizes, próximo ao pequeno apartamento onde moravam o escritor e sua mulher Palma, Marcos Rey falou sobre literatura, São Paulo e a vida.
TUDA – Dezessete de fevereiro de 1925 é a data do seu nascimento. Em que bairro de São Paulo você nasceu?
Marcos Rey – Nasci no bairro do Brás. Mas nunca fui muito um homem do Brás, porque, dois anos depois, meu pai mudou e a família foi morar na rua Genebra (bairro da Bela Vista, o conhecido Bixiga). Depois da Genebra, mudamos para a Maria Antônia, depois, para a rua Helvétia. Sempre fiquei nos Campos Elísios, como Ribeiro da Silva, rua Apa, onde vivi muitos anos.
TUDA – Como era a sua vida, como criança, nos Campos Elísios?
Rey – Na minha infância havia, nos Campos Elísios, muitos vestígios dos grandes tempos do café. A própria Barão de Limeira, no começo do século, foi uma rua de casarões, de mansões. A Eduardo Prado também. Era um bairro um tanto aristocrata. Hoje é muito decadente, os grandes casarões viraram casas de cômodos. Aí, eu me lembro do meu pai, um homem cheio de manias. Ele dizia: "Posso morar mal, mas quero morar perto". Ele gostava de morar perto do centro. Não havia um dia em que ele não fosse ao centro. Ia a pé, gostava de andar a pé, e, por isso, gostava dos Campos Elísios. Meu pai adorava morar perto do centro. Ele chamava de triângulo. "Vou lá em baixo", dizia. A cidade desce? Ele ia lá, tinha amigos. Meu pai era um grande boêmio. Naquela época, centro era centro. Hoje, claro, todo bairro tem um centro. Tem centro na Penha, no Brás; naquele tempo tinha um centro só. E, morar perto do centro era um privilégio, morar perto do centro já era um status. Por isso que ele dizia: "Prefiro morar mal, mas morar perto". Nessa época a gente morava na rua Apa, a rua do Castelinho, onde houve o famoso crime. Eu tinha 10 anos. Eu morava lá, conhecia até os protagonistas. Eram dois irmãos, uma irmã e a mãe. Moravam naquele lugar. Na época, o castelo parecia grande; hoje parece uma droga. Quando era criança achava que ele era imenso. Bem, eram dois irmãos: um era advogado e o outro era engenheiro. Eram ricos. Eram donos do Cine Broadway, que era o cinema da moda. Também eram donos de um grande terreno na Frederico Steidel e um casarão na Angélica. E um deles veio dos Estados Unidos com a idéia de fazer um rinque de patinação. O advogado era o Álvaro Reis. O irmão chamava-se Armando César dos Reis. Por causa desse irmão, que se opôs a essa idéia, que achava maluca, eles brigaram com uma arma. A polícia técnica, naquela ocasião, disse que a mãe havia sido atingida por acaso na briga. Um sujeito acabou se suicidando. Três corpos foram encontrados. Ainda hoje, há dúvida de quem teria sido... mas foi uma briga entre os dois irmãos. Eu conhecia justamente o acusado de ter sido o criminoso. Era um cara completamente desinibido. Naquela época, em que era difícil ter um carro, ele tinha três. Um era carro de corrida, parecia ser um carro de corrida, acho que era Bugatti. Tinha motocicleta e andava na calçada. Quando ele surgia, todas as crianças corriam atrás dele. Eu também ia. Ele tirava balas do bolso, um monte de balas, e jogava. Todo dia ele dava balas para as crianças. Era a única casa rica do quarteirão. É claro que este crime me abalou tanto que eu me tornei autor dos meios policiais, desde aquela tragédia.
TUDA – Qual é a lembrança mais perto da sua infância envolvendo a cidade de São Paulo?
Rey – Nós morávamos na Maria Antônia. Era uma rua chique, mas a nossa casa não era. Era uma casa pobre num bairro rico: Higienópolis. Todo domingo meu pai saía comigo. Eu tinha 7 ou 8 anos. Sabem o que ele ia fazer? Ia ver casarões para alugar ou para comprar. Ele não tinha a possibilidade nem de alugar um quarto. Mas ele achava que tinha. Então, essa foi a coisa que mais me marcou na minha infância. Aí, a gente encontrava aqueles puta casarões que meu pai examinava metro por metro: o encanamento, a parede se não estava muito manchada, e tudo. Mandava chamar o encarregado, queria saber o preço. Eu fiquei conhecendo todo aquele bairro de Higienópolis. – a
TUDA – Que época era essa?
Rey – 33, 32... Os grã-finos já começavam a ir para o Pacaembu. Mas o que me marcou muito foi a sedução dos casarões. O meu pai me levava e, depois, chegava e me perguntava: "A gente pode morar aí?" Ele tinha mania de grandeza. Quando escrevi Maurício, Maurício, um conto daquele tempo, a história se passa num grande casarão. E, de quando em vez, descrevo uma casa maravilhosa. Era a lembrança daquelas casas que ele me levava para conhecer. Eu conheci São Paulo assim: eu saía muito com meu pai, quando era criança, e ele sempre me levava ao centro. Eu ficava deslumbrado com o movimento da rua Direita, das praças do Patriarca e da Sé...
TUDA – O prédio da Light; o Martinelli?
Rey – Ah, o Martinelli! Eu achava que era a coisa mais alta do mundo. Uma vez, meu pai me levou para subir o Martinelli de elevador, acho que foi em 41...
TUDA – Época da guerra, na Europa...
Rey – Era. Foi depois da guerra que São Paulo se modificou, com a abertura das avenidas Ipiranga e 9 de Julho. Aí surgiram o cine Ipiranga com o luminoso, o Marabá com aquela coisa toda. Aquele quarteirão ficou extremamente chique.
TUDA – É dessa época, também, a galeria Prestes Maia, a avenida que tem o túnel, a 9 de julho. Como é que foi aquele negócio?
Rey – Ah, a 9 de julho! A avenida era fissurada, achavam que era um exagero o túnel e a avenida. Mas só por pouco tempo.
TUDA – Hoje acham que ela é acanhada: como é que os caras podiam ter pensado que isso fosse resolver o problema da 9 de Julho?
Rey – Eu me lembro do escritor Tito Batini, comunista histórico. Disse-me o Tito que, quando ele casou, ele estava tão ruim de dinheiro que, em vez de ir para a lua de mel, ele pegou um táxi e levou a mulher para conhecer o viaduto da 9 de Julho. Foi a lua de mel mais mixa de que eu tenho notícia.
TUDA – Quando o Brasil entrou na guerra, em 1942, você tinha 17 anos. Como era a sua vida em São Paulo?
Rey – Olha, vou dizer uma coisa melancólica. Os jornalistas não falam, dizem que não se lembram. Mas, pelo menos em São Paulo, havia uma preferência pelo Eixo que era incrível. Foi um período meio triste para mim. Não tinha amigos. Todos os meus amigos eram fanáticos pelo Hitler, pelo Mussolini. Embora eu fosse descendente de italianos, o que prevalecia na minha casa era a religião da minha mãe: protestante. Ela era ligada aos americanos, americanófila, entendeu? Meu pai, por exemplo, era contra o Eixo por causa da formação da minha mãe. Mas no país, até o Brasil entrar na guerra, ninguém tomava conhecimento e os que eram do Eixo continuaram favoráveis. Ninguém mudou de opinião por causa disso. Eu me lembro de que sentia um isolamento dos amigos. Era muita gozação, porque a Alemanha venceu em 1939, 40, 41, 42 e 43. Então a cada surra que eles davam nos ingleses, eles me gozavam. Os parentes do meu pai davam grandes festas. Um dia, fui à festa de um parente e estavam comemorando a expulsão de muitos ingleses da Grécia. Não posso deixar de me lembrar, também, que o rádio teve uma evolução incrível durante a guerra. Surgiam notícias de meia em meia hora nos rádios. Os próprios jornais evoluíram durante a guerra: manchetes, comentários, as agências de notícias. Se não me engano, foi nessa época da guerra que começou o envio de radiofotos. A Segunda Grande Guerra não era como essa última guerra aí do Golfo, em que ninguém acreditava. Foi uma guerra que durou cinco anos e meio, entre vai e vem, com lutas no norte da África. Os alemães chegavam, recuavam, depois avançavam de novo. Era um vai e vem terrível.
TUDA – Agora, mudando um pouquinho, como era o namoro naquela época?
Rey – Era assim: havia a instituição do muro. Não era o muro de Berlim. Se havia um muro em São Paulo, você via três, quatro casais se apertando, se encostando. Isto é gostosíssimo, não é? Nunca fui de muro e, sobre muros, eu tenho até um certo complexo, porque, às vezes, a polícia prendia os casais. Eu era mais chegado numa boate. Eu tive uma namorada que foi presa na rua Domingos de Morais. A polícia implicava com gente que estava no muro, mas o muro era uma instituição nacional.
TUDA – Escurinho; iluminação de lampião?
Rey – Não. Elétrica mesmo, só que era parca, fraquíssima.
TUDA – Quer dizer que dava pra fazer as coisas no muro?
Rey – Dava, eu acho que dava. Tinha muito terreno baldio. No meu livro Ópera de sabão acontece uma cena no terreno baldio: é quando ela sente coragem de dar pro cara.
TUDA – Como era o seu roteiro nos bares, na época dos anos 50?
Rey – Foi nessa época que fui trabalhar no rádio. E o que aconteceu? Fui ganhar um salário ótimo; era 4.000 e logo depois me passaram para 6.000. Foi um período de ouro: surgiu o long play, o uísque entrou na moda, foi a época das boates. E surgiram as boates da Vila Buarque. Cuba libre era uma instituição nacional. A gente bebia muito Cuba libre; depois, descobri o uísque. Eu não entendia nada; mas ouvia meu irmão mais velho, Mário Donato, e copiava: "Hoje vai um Queen Ane."
TUDA – Nessa época você vivia com seus pais?
Rey – Vivia; até casar.
TUDA – Vocês eram quantos?
Rey - Quatro. Mas os outros já tinham casado. O meu companheiro era o Mário; companheiro de músicas, descobertas musicais, cantores. Ele era diretor da Rádio Excelsior, onde eu era redator.
TUDA – Que cantores?
Rey – A gente gostava do Dick Farney, que era bem americanizado, do Lúcio Alves. A voz de Billie Holiday e o piano de Art Tatun.
TUDA – Vem daí o seu gosto pela literatura americana?
Rey – Um pouco anterior. Eu me lembro de que quando voltei do Rio de Janeiro, em 1946, comecei a ler os grandes da prosa americana. Li Doroty Parker, numa tradução em português de que ainda hoje eu me lembro, uma tradução que é de morrer de rir. E John dos Passos, William Faulkner, Scott Fitzgerald. Então, eu me tornei realmente um entendido na literatura americana. Eu li toda aquela turma. Logo, eu conversava muito com o Bruno Silveira, que era tradutor.
TUDA – Você chegou a conhecer o Mário?
Rey – Mário de Andrade? Não. Eu conheci muito bem o Oswald, mas o Mário não. Quando o Mário morreu eu tinha 20 anos. O Oswald? Conheci e fui amigo mesmo. Conheci o Oswald no salão da Carmem Dolores Barbosa. Naquela época, coube a mim fazer umas reportagens com escritores, reportagens grandes, de duas páginas. Eu fiz com o Cornélio Pena, escritor que, até hoje, não foi totalmente reconhecido; com o Amadeu de Queiroz, que estava no fim da vida, já velhinho. Aí, conheci o Oswald e tive a idéia de entrevistá-lo. Eu fui à casa dele e, chego lá, encontro o Antônio Olavo Pereira e o Osmar Pimentel. Mas toda pergunta que eu fazia, os dois aconselhavam o Oswald a não responder: "Não diga isso, Oswald, vai repercutir mal". Era que eles estavam lançando um livro dele: Um escritor sem profissão. "Não, não responda isso." Aí eu fiquei puto por causa da intervenção dos dois, que o vigiavam. Eu fiz a entrevista, saiu uma página e meia. Ele não estava nem um pouco preocupado com literatura. Estava preocupado com a tal da "miss Ciclone", que foi uma das amantes dele e que morreu por culpa dele. Ele dizia que a obra dele não tinha nenhum valor. Quem tinha valor era o Mário de Andrade. "O meu teatro nunca será representado."
TUDA – O que você, pessoalmente, acha da obra dele?
Rey – Não dou esse valor que a turma dá, elevá-lo à qualidade de gênio e tal. Acho que o Mário de Andrade fez um negócio muito mais rico. Não é verdade, você não acha? E conhecia mais do que ele. O Oswald não lia porra nenhuma, só orelha de livro. Mas era muito engraçado, isso lá era. Quando o conheci, ele estava com bronca do mundo. Não se conformava que a mocidade o tivesse abandonado. Às vezes eu leio que ele morreu cercado pelos jovens. Não é verdade. O único jovem era eu. Uma vez, ele me ligou e fui à casa dele. Quando cheguei, ele quis pagar um almoço e passear de carro. Ele tinha um Fiat igual ao meu. Passear de carro, com a mulher dele dirigindo... Ele se sentia muito abandonado e isto me impressionava. Era um escritor famoso e abandonado.
TUDA – E o que ele dizia das relações dele com as mulheres?
Rey – Ele era até um pouco quadrado nisso. Ele logo se preocupava em se casar. Ele nunca me contou de uma aventura passageira fora do casamento. Toda mulher dele era para casar... igreja, comprar apartamento... era um amante à moda antiga.
TUDA – O que seria um amante à moda antiga?
Rey – O homem que leva muito a sério as suas paixões. O Oswald se apaixonava realmente. Quer dizer, por aquelas mulheres com quem ele viveu. Ele tinha se apaixonado por todas elas.
TUDA – E qual é a mulher que você acha que ele amou realmente?
Rey – Ele me dizia que era a Antonieta, a última, que era muito mais nova do que ele, uns trinta anos mais nova. Ele dizia para mim que era a única que ele realmente amou.
TUDA – Marcos, fale um pouquinho deste livro que você está escrevendo. É uma relação de amor ou de desamor com São Paulo?
Rey – Desamor não me levaria a escrever. Também não é uma paixão desvairada. Talvez seja mais um amor ao passado do que à própria cidade. A cidade é um cenário, a cidade é um tremendo cenário. Estou mais interessado nas pessoas do que na minha própria vida. E eu acho que há muita coisa para contar, inclusive, uma parte do Rio, onde vivi um ano e meio.
TUDA – Você acha o Rio de Janeiro uma cidade realmente fantástica?
Rey – Eu morei no Rio em 45 e 46. Sabe onde eu morei? Na rua da Lapa! Foi onde comecei a escrever meus primeiros contos metropolitanos. Uma coisa que ninguém sabe. Dizem que eu sou tipicamente paulista, mas, na verdade, os primeiros contos foram bolados no Rio. Em São Paulo, naquela época, eu era um cara vigiado pela família. Eu tinha 19/20 anos e, no Rio, eu estava em liberdade. Então eu conheci profundamente aquela boemia carioca, os vagabundos da Lapa. Conheci todos. Fiquei um ano e meio morando lá na Lapa e eu acho que aquilo marcou um pouco a minha vida. Quando eu voltei, foi quando estouraram os night clubs, as boates.
TUDA – Então, antes a vida noturna de São Paulo era provinciana?
Rey – Quando eu voltei, achei muito provinciana.
TUDA – Quer dizer que o Rio não tinha nem comparação?
Rey – Na época, o Rio ganhava. Mas, em 1950, São Paulo logo se equiparou. Já se dizia que era melhor. Agora, eu continuei freqüentando o Rio. Como redator da Rádio Nacional, volta e meia eu ia para o Rio.
TUDA – Eram os anos dourados?
Rey – Sim, grandes transformações. A popularização da geladeira, do telefone, da luz elétrica. Nesse período, fui trabalhar em uma agência chamada Panam, que, na época, era uma grande agência. Eu era o redator da Brastemp e criei um slogan chamado "espaço integral", porque foi a Brastemp que inventou as portas utilizáveis.
TUDA – Panam, Casa de Amigos?
Rey – Sim, da família Souza Ramos. E, aí, a porta utilizava o espaço integral. Foi um grande negócio.
TUDA – A Panam tinha a conta da Light...
Rey – Aliás, eu estava sempre na Light e na Telefônica. Light, Telefônica e Brastemp eram as três principais contas da Panam.
TUDA – Você fez algum anúncio para a Light?
Rey – Fazia muito para a Brastemp. A Light era um negócio meio quadradão. Às vezes mandavam sugestão já pronta. Depois da Panam, fui para a Norton. E, ali, está a minha melhor história na propaganda. Eu trabalhava na Norton quando houve o golpe militar em 1964. O dono era o Geraldo Alonso, que me obrigou a fazer um artigo sobre o Castelo Branco. Imagine eu, naquela pressão, escrever um artigo que favorecesse o Castelo Branco. Aí escrevi um artigo, com três laudas, para ele publicar nos jornais. Então ele leu: "Muito bem, parabéns, está ótimo". Nisso um cara vinha entrando: "Leia isso aí", disse. O cara leu, leu, e falou: "Tem umas coisas aí que parecem que são contra o Castelo Branco, não?" Então, ele chamou o diretor de rádio e TV: "Leia isso." "Está meio frio, está meio frio", disse o diretor. O Geraldo leu novamente e, quando o Geraldo leu de novo, ele é que não se convenceu: "Realmente, tem alguma coisa aqui", disse. Chegou mais um, ou dois, morreu o dia. No dia seguinte, vou à diretoria. Na mesa redonda tinha 22 pessoas, todo mundo lendo o artigo. Um achava que era ótimo, outro achava que tinha algumas coisas contra o Castelo Branco. Outro achava indiferente, outro disse que era coisa de comunista. Todos da Norton leram... as telefonistas leram... Todos tinham uma opinião a respeito. Uns achavam meio frio, outros diziam para publicá-lo. Resultado: teve que ter eleição, votação. Por um voto resolveram que era melhor o artigo não ser publicado, por segurança. Agora, seria o meu maior artigo num livro, ia ser uma obra-prima. A minha maior tristeza é não ter conservado este artigo. Hoje, deveria estar nas universidades.
TUDA – Em plena ditadura, democraticamente, fizeram a votação do artigo? Você o jogou fora?
Rey – Sim, depois me arrependi.
TUDA – Na época, a publicidade pagava tão bem como hoje?
Rey – Acho que pagava. A vida também era tão barata que é difícil fazer este cálculo. Uma vez tentei fazer esse cálculo com meu irmão Mário, mas não conseguimos. Não era tanto salário mínimo, mas dava para ir a um grande restaurante toda noite. E estava pagando muito mais que o rádio e a televisão. Depois, eu era um cara que não gastava dinheiro. Nesse período eu só tive um carro, um Fiat. Estava sempre quebrado, o motor de arranque nunca funcionava. Depois, eu achei que era um negócio muito perigoso: alcoólatra dirigindo na madrugada, ninguém queria andar comigo.
TUDA – Mas o trânsito era pequeno?
Rey – Tinha menos carros, mas as ruas eram mais estreitas. Não havia grandes avenidas, tinha o bonde. Eu era meio atrapalhado, perigoso e ninguém queria andar comigo... só a pé.
TUDA – Um arquiteto português dizia que no Brasil se cuida bem, se preserva bem a arquitetura. Você concorda com isso?
Rey – Bem, certa época escrevi um livro A história da habitação humana. Para elaborar este livro, eu que nada conhecia de arquitetura, tive de procurar a ajuda de arquitetos. Aí, me apaixonei pela arquitetura. É uma profissão que eu podia ter seguido. Talvez tudo isso seja reflexo das visitas aos casarões, que meu pai me levava na minha infância. Quanto à preservação, não sei responder. Parece que não.
TUDA – A São Paulo dos anos 50 ainda resiste?
Rey – Bom, os arranha-céus, que hoje chamam de espigões, descaracterizam qualquer cidade. Em Paris há uma zona que só tem prédios, à margem do Sena; o pior local do Sena é aquele. Parece que não é mais Paris. Mas, aí é inevitável. Eu não sou contra isso porque é uma coisa inevitável. Mas devemos preservar o que restou. Eu sou favorável, por exemplo, à preservação do Bixiga. A preservação dá um charme tremendo. O Bixiga tem charme. Mas tudo é novo em São Paulo, até o velho paulista é novo. É novo na escala do tempo. Você vê um casarão que tem 50 anos, mas não chega a ter história. Em compensação, temos coisas de muito valor histórico que devemos preservar.
TUDA – Seu trabalho envolve memória, não só da cidade como também dos seus habitantes. Isso que você retrata nos seus livros. O país cuida da sua memória?
Rey – Há um ano e meio fui chamado para trabalhar na FAAP, com aulas de roteiro. Convivo com alunos do sexto semestre de uma faculdade. Eles têm 22 e 23 anos. Eu acho errado dizer que são todos imbecis, não é verdade. Eles são inteligentes, mas me assusta conversar com eles. Parece que o mundo, para eles, começou agora. Outro dia, falei em Euclides da Cunha. Um deles perguntou se eu conhecia o Euclides da Cunha. Eles não têm a noção do tempo, da continuidade: "Isso é velho pacas", dizem. Então, isso me assusta. Esse contato semanal com a juventude tem me assustado, sobretudo pela falta ou perda da continuidade das coisas. Será que aquele mundo que eu vi e vivi vai naufragar inteiramente? Será que ele vai desaparecer água abaixo, como o Titanic? Será que ele vai afundar de uma vez? Acho que o fato de eu estar escrevendo esse livro meio memorialístico talvez seja até um reflexo desse convívio com a mocidade, que estou tendo agora. Comecei a ficar assustado. Em matéria de tudo. Nunca ouviram falar em Bing Crosby. Será que é normal? É o samba do crioulo doido, não é?
TUDA – Não seria a questão da fragmentação do tempo, da informação do vídeo? Ou seja, existe tempo, mas não existe continuidade?
Rey – E houve coisas fascinantes. No meu tempo, uma das coisas que mais me impressionaram foi a descoberta da penicilina. Só há três inventos importantes: o telefone, a geladeira, que eu não gosto de tomar coisa quente, e a penicilina. Hoje, falam muito da liberdade sexual, mas já imaginou um período, como foi o de 1946, quando anunciaram que não existiam mais doenças venéreas? Era um tempo mais inocente, mas de grande trepação. E era só chegar na farmácia, tomar uma injeção e você já estava curado.
TUDA – Começou quando na televisão?
Rey – Comecei no rádio, na Excelsior, em 1949, mas só entrei na televisão em 1955, no canal 5 (TV Paulista). Depois, fui para a TV Excelsior; da Excelsior para a Tupi, Record, voltei para a Tupi, para a Excelsior. Nos últimos tempos, fiquei doze anos na TV Globo. Mas não tenho mais nenhuma sedução por esse tipo de produção. Acho uns fabricantes de bolhas de sabão. Todo mundo fala pra mim: "Você está fazendo novela e é visto por milhões de pessoas". Mas, uma semana depois, ninguém se lembra, ninguém sabe quem escreveu. Um mês depois, nem os autores lembram. Eu sei disso, porque uma TV da Venezuela quis comprar uma novela minha, que eu fiz na Tupi. Mas minha mulher, diante daquele calhamaço, o jogou fora, pois estava criando traça. Então, o homem da TV falou: "Não precisa reescrever a novela, queremos apenas a sinopse. Nós compramos a sinopse", ele disse. Acreditem: não me lembrava da história. Aí, telefonei para todos os artistas ainda vivos, que haviam trabalhado na novela. Lembravam da novela, mas não lembravam da história. Ninguém lembra. Quer dizer: é como fabricar bolhas de sabão. Com o livro, não. Meu livro Um gato no triângulo, de 1953, que tirou três mil exemplares, volta e meia encontro alguém que leu. E, melhor, lembra da história.
TUDA – A televisão seria a anti-memória?
Rey – Eu acho. Em geral, é.
TUDA – Qual o roteiro turístico que você faria, hoje, um sábado para lembrar a São Paulo da década de 50. É possível?
Rey – Para mim, o sábado seria uma prorrogação da sexta-feira. Prorrogação não; o grande dia era a sexta-feira. Quando trabalhava na publicidade, saía na sexta e só voltava na segunda. Também, o grande hollyday começava na sexta. Na sexta eu ia num lugar que ainda existe hoje: o Scarabocchio. O Scarabocchio é um lugar de fim de tarde, onde se reúnem as mais lindas garotas de programa da cidade de São Paulo. Onde todos tinham carro. Todos eram motorizados. Nessas saídas, eu ia com meu amigo Cláudio Corimbaba, que me inspirou o romance Memórias de um gigolô. Eu ia lá porque sabia que estava sendo bem conduzido. Inclusive, o Cláudio tinha conta permanente nesse lugar de encontros. Aí, como amigo do Cláudio, eu não ficava na mão, não sobrava. Era uma espécie de chacal daquele gigolô. O Paris já estava começando a regorgitar de garotas. Chegávamos e tal; tínhamos uma mesa cativa. A Rádio Nacional tinha mesa cativa no Clube de Paris... ficava na rua Araújo. Então, do Clube de Paris, a primeira parada era no Dom Casmurro. Lá era um lugar muito elétrico. Nas sextas-feiras tinha o famoso "arroz a la grega", um arroz com camarão que era maravilhoso. Terminava isso lá pela meia-noite. Tinha ainda programas opcionais: ir ao Arpège, que era uma boate meio chique na avenida São Luiz. Ficávamos até duas horas e, depois, sempre dava uma passada no Nick Bar. Uma passada, uma passadinha para ver o que estava acontecendo ali. Às vezes tinha uns cantores bons: o Dick Farney, o Ivon Cury, que era um grande amigo meu, engraçadíssimo, ou o Lúcio Alves.
TUDA – A condução era táxi ou carro próprio?
Rey – Carro ou táxi. Táxi era baratíssimo. Hoje é caro pra burro, mas era barato. Eu tinha um carro e o Cláudio também. O Cláudio também dirigia mal, porque estava sempre bêbado. Não era aconselhável. Aí, a gente ficava no Nick Bar até às 3 ou 4 horas da manhã. E, geralmente, pegávamos ainda as boates do fim de noite. Havia a chamada Chez Moi, na rua Augusta; outra chamava-se Chez Armand, na rua Rego Freitas. Havia outro chamado Pierrot. Pierrot era bar-boate. Eles tinham uma cantora italiana chamada Ana Hélia, que a gente gostava de ver.
TUDA – E o Refúgio, na avenida 9 de Julho?
Rey – Iam muitas mulheres casadas no Refúgio. Era de uma escuridão tenebrosa. Era o lugar mais escuro do mundo, o único lugar em que a Light não ganhava dinheiro.
TUDA – Estamos na sexta.
Rey – Estamos na sexta. Aí, à tarde, era aquela puta dormida. Dormia até tarde, mas no fim da tarde de sábado a gente já se encontrava nos bares da São Luiz, que eram o Mirim, o Plata e o Paribar. O Paribar eu freqüentei muito. Então eram os bares que já estavam abertos sábado à tarde e, aí, nós ficávamos lá enchendo a cara de cerveja. No sábado, havia um negócio assim de Clube dos Artistas. O sábado não era um grande dia: Clube dos Artistas, Dom Casmurro... agora, se tivesse dinheiro, a glória era o Oásis. Eu tinha uma garota que eu só ia com ela no Oásis. Eu pedia dinheiro pra todo mundo: "Me dá dois mil, me dá mil, deixa eu levar a Anita ao Oásis. Puta merda, era a minha Anita!
TUDA – Vem daí o título do livro de seu irmão, Mário Donato, A presença de Anita?
Rey – Não. O Mário nunca teve uma Anita; ela era minha.
TUDA – Estamos no sábado.
Rey – O sábado era uma repetição. Ia-se muito ao Oásis, quando tinha dinheiro, ou ao African Boate, uma boate de luxo. Sempre passava no Clube dos Artistas pra sentir a noite. Se tivesse uma garota especial, a levava ao Je Reviens, lá no final da Paulista.
TUDA – Onde tem hoje aquele barzinho chamado Riviera?
Rey – Riviera, ao lado do Riviera.
TUDA – Domingo. Você não ia remar no Tietê?
Rey – Não, não ia. Não tinha forças pra isso.
TUDA – Por que Marcos Rey?
Rey – Meu nome é Edmundo Donato, Marcos Rey é pseudônimo. Quando comecei a escrever, publiquei, pela primeira vez, na Folha. Foi em 1941. Estreei numa capa de rosto do suplemento literário, com desenho do Belmonte.
TUDA – Era um conto?
Rey – Era. Hoje eu o acho horrível, mas tive um grande destaque. Mas então o Mário me chamou e disse: "Você vai ser o terceiro a usar o sobrenome Donato: Hernani Donato, eu e, agora, você. Por que não arranja um pseudônimo? No começo eu resisti um pouco, mas aí me lembrei da Bíblia e do personagem Marcos. Naquele tempo o nome Marcos não era tão manjado como é hoje. Também me lembrei de uma bisavó, que não conheci. Era italiana e passou uma tradição oral para minha mãe. Ela se chamava Delré. Aí, pensando em por Rei, Reis, ficou Rey. E eu continuei publicando, inclusive numa revista chamada Oriente, uma revista meio de picaretagem, mas que pagava cem mil réis, ou cem cruzeiros, em 1943. Cem mil réis dava para comprar 50 maços de cigarros, que eu fumava escondido.
TUDA – Qual cigarro?
Rey – Elmo, mas era um horror.
TUDA – Você escreve um livro de memórias. Como está o trabalho?
Rey – Comecei a fazer uma série sobre figuras que eu conheci no meu tempo. Recentemente fiz uma com Lima Barreto, o cineasta. Está primorosa, acho. Lima era considerado o cara mais chato da noite. Todo mundo fugia dele. Tinha mania de dizer: "Você é capaz de imaginar um diálogo entre mim e Voltaire? Se for capaz, você tem cultura." Um dia, um amigo meu disse para ele que tinha visto O Cangaceiro e achou uma droga. Foi a única pessoa que teve coragem de dizer pra ele que O Cangaceiro era uma droga. O Lima Barreto ficou uma semana apagado. Outro dia, ele voltou ao Dom Casmurro, sentou-se à mesa e falou: "Vocês são capazes de imaginar um papo entre mim, Voltaire e Shakespeare?" Tinha acrescentado mais um; mais um...
TUDA – Voltaire foi insuficiente?
Rey – Mais um. Então, a primeira parte do livro é sobre tipos curiosos que conheci na noite. Há algum tempo o escritor João Antônio me escreveu dizendo que não me esquecesse dos chatos, porque eles dão boas histórias. Foi graças ao João que comecei a pensar nos chatos.
TUDA – Eram muitos os chatos?
Rey – Um foi o Lima. Mas tem outro que é histórico. É o seguinte: quando nós estávamos para sair da boate, às cinco da matina, ele chegava bem vestido, cheirando a sabonete. Parecia que tinha saído do banho naquele momento. E ia abraçando todo mundo nas mesas e dizendo: "Old friend, old night, old times, old friend..." Era cada abraço dolorido, afogava a gente. Durante uns cinco anos encontramos esse cara e nunca conseguimos descobrir quem ele era. "Old friend, old night..." Até o dia em que ele desapareceu. Aí, começamos a desconfiar que os velhos tempos, os velhos amigos, as velhas noites estavam acabando.
Confira a página de Marcos Rey:
http://www.marcosrey.com.br/home.htm